Quando, porém, a lei do Senhor nos for
exaustivamente explicada, então se confirmará mais convenientemente, afinal, e
com mais proveito, o que antes expus acerca de sua função e uso. Antes, porém,
que prossigamos a considerar a cada artigo, um a um, vale a pena focalizar
previamente apenas aqueles pontos que contribuem a um conhecimento geral dela.
De início, seja estabelecido que na lei a vida do homem é amoldada não só à
honestidade exterior, mas também à retidão interior e espiritual. Embora
ninguém possa negar isto, pouquíssimos, entretanto, disso se apercebem
devidamente. Isso acontece porque não atentam para o Legislador, em função de
cuja índole se deve aquilatar também a natureza da lei. Se, mediante um
decreto, algum rei proíba o fornicar, o matar, o furtar, confesso que não
incorrerá em penalidade quem haja apenas concebido na mente o desejo de
fornicar, de matar, de furtar, contudo nada destas coisas tem perpetrado. Isto
é, visto que a jurisdição
do legislador mortal não se estende senão à conduta externa, não se lhe violam
as ordenanças senão mediante crimes consumados. Deus, porém, a cujo olho nada
foge e que se não atém tanto à aparência externa quanto à pureza de coração,
sob a proibição de fornicação, homicídio, furto, proíbe a concupiscência, a
ira, o ódio, a cobiça do alheio, o dolo e tudo desse gênero. Ora, uma vez que
ele é um legislador espiritual, fala à alma não menos que ao corpo. Mas, o
assassínio da alma é a ira e o ódio; o furto, a cobiça má e a avareza; a
fornicação, a concupiscência. Também as leis humanas, dirá alguém, atentam para
os propósitos e as intenções, não para meros eventos fortuitos. Admito-o,
contudo são as intenções que vieram a exteriorizar-se. Ponderam cuidadosamente
com que intento se haja cometido todo e qualquer crime; não esquadrinham,
porém, os pensamentos secretos. Conseqüentemente, cumpridas terão sido elas
quando da transgressão alguém tenha simplesmente retido a mão. Em
contrapartida, porém, visto que a lei celestial foi promulgada para nossas
almas, necessária lhes é, antes de tudo, a coerção à sua justa observância.
Mas, o comum dos homens, ainda quando camufla vigorosamente o desprezo da lei e
dispõe os olhos, os pés, as mãos e todas as partes do corpo a certa observância
da lei, ao mesmo tempo mantém o coração completamente alienado de toda
obediência e julga haver-se desincumbido de suas obrigações, se haja
habilidosamente dissimulado aos homens o que faz à vista de Deus. Ouvem: “Não
matarás; não adulterarás; não furtarás.” Não desembainham a espada para
matança; não ajuntam seus corpos às meretrizes; não lançam as mãos aos bens
alheios. Tudo isso está bem até aqui. Mas, de toda a alma, respiram mortes,
abrasam-se de volúpia; olham de esguelha para os bens de todos e os devoram de
cobiça. Já está, na verdade, ausente o que era o ponto principal da lei. Donde,
pergunto, procede tão crassa obtusidade, senão que, deixando de parte o
Legislador, acomodam antes os homens a justiça a seu talante?Contra estes,
Paulo protesta veementemente, categorizando que “a lei é espiritual” [Rm 7.14],
significando com isso que ela não só exige obediência de alma, mente e vontade,
mas ainda requerer pureza angelical, pureza que, purgada de todas as sordidezas
da carne, de nada saiba senão o espírito.
João
Calvino