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quinta-feira, 19 de julho de 2018

A LEI FOI DADA NÃO PARA QUE EM SI RETIVESSE O POVO ANTIGO, MAS, AO CONTRÁRIO, PARA QUE FOMENTASSE A ESPERANÇA DA SALVAÇÃO EM CRISTO ATÉ SUA VINDA

A RELIGIÃO MOSAICA, FIRMADA NO PACTO DA GRAÇA, SE POLARIZA EM CRISTO


Dessa ininterrupta sucessão de testemunhos que referimos é lícito concluir que a lei foi acrescentada cerca de quatrocentos anos após a morte de Abraão não para afastar de Cristo o povo eleito; pelo contrário, para que mantivesse as mentes suspensas até sua vinda, até mesmo lhe acendesse o desejo e na expectação os firmasse, para que não esmorecessem por uma demora mais longa. Pelo termo lei entendo não apenas os Dez Mandamentos, que prescrevem a norma de viver piedosa e justamente, mas também a forma de religião por Deus transmitida pela mão de Moisés. Pois, nem foi Moisés constituído legislador para que cancelasse a bênção prometida à raça de Abraão; pelo contrário, vemos que, a cada passo, traz de novo à lembrança aos judeus, como se tivesse sido enviado a fim de renovar esse pacto gracioso feito com seus pais, do qual eram herdeiros. Isto se fez mui claramentemanifesto à luz das cerimônias veterotestamentárias. Ora, que mais inútil ou frívolo que, a fim de se reconciliarem com Deus, oferecerem os homens o fétido odor a desprender-se da gordura de animais a fim de expurgar-se de suas imundícies, e a recorrerem à aspersão de água e de sangue? Em suma, todo o sistema cultual da lei, se é considerado em si, nem mesmo contém sombras e figuras a que corresponda a verdade, será coisa inteiramente risível. Pelo que, não sem causa, tanto no discurso de Estêvão [At 7.44], quanto na Epístola aos Hebreus [8.5], é tão diligentemente ponderada aquela passagem onde Deus ordena a Moisés que tudo quanto dizia respeito ao tabernáculo o fizesse em conformidade com o modelo que lhe havia sido mostrado no monte [Ex 25.40]. Ora, a não ser que fosse proposto algo espiritual, a que se inclinassem, os judeus não teriam se afadigado mais nesses cerimoniais do que os gentios em suas ninharias. Os homens profanos, que jamais se entregaram seriamente ao zelo da piedade, não conseguem ouvir sem fastídio a tão multíplices ritos, nem só se maravilham por que Deus haja fatigado ao povo antigo com tão grande acervo de cerimônias, mas ainda as desprezam e delas mofam como se fossem divertimentos infantis. Isto, na verdade, porque não atentam para o fim, do qual as prefigurações da lei se destacam, têm-se necessariamente de condenar como futilidade. Com efeito, aquele modelo supra referido mostra que Deus não ordenou os sacrifícios para que ocupasse seus adoradores em exercícios terrenos, mas, antes, para que mais alto lhes elevasse a mente. O que se pode claramente constatar até mesmo de sua própria natureza, posto que, como é espiritual, não se agrada de outro culto que não seja espiritual. Comprovam isto tantas afirmações dos profetas, com as quais acusam os judeus de estultície, porquanto pensam ser de algum valor diante de Deus qualquer sacrifício. Porventura é porque o intento derroga alguma coisa à lei? De modo algum. Pelo contrário, visto que eram seus verdadeiros intérpretes, quiseram que desse modo fossem os olhos dirigidos para o escopo do qual o povo comum estava se desviando. Já da graça oferecida aos judeus conclui-se com certeza que a lei não havia sido vazia de Cristo, pois Moisés lhes propôs esta finalidade da adoção: que fossem um reino sacerdotal a Deus [Êx 19.6], o que não podiam alcançar, salvo se uma reconciliação se interpusesse, maior e mais excelente que de sangue de animais[Hb 9.12- 14]. Ora, a não ser que tão excelente bem lhes proviesse de outra parte que não de si mesmos, que é menos congruente que serem elevados à régia dignidade, e desse modo os filhos de Adão se fazerem participantes da glória de Deus, que de mácula hereditária nascem todos na servidão do pecado? Também, como pôde vigorar o direito de sacerdócio entre aqueles que, pela sordidez das transgressões, eram abomináveis a Deus, a não ser que fossem consagrados em uma Cabeça Santa? Por isso, com muita propriedade, Pedro converte esse postulados de Moisés, ensinando ter sido exibida em Cristo a plenitude da graça, cujo gosto os judeus haviam provado sob a lei: “Vós sois a raça eleita”, diz ele, “o sacerdócio real” [1Pe 2.9]. Ora, a reversão dos termos aponta para isto: terem alcançado mais aqueles a quem Cristo apareceu mediante o evangelho do que seus pais, pois que todos foram dotados da dignidade sacerdotal e real, de sorte que, confiados em seu Mediador, ousem achegar-se livremente à presença de Deus.

João Calvino