Dessa ininterrupta sucessão de
testemunhos que referimos é lícito concluir que a lei foi acrescentada cerca de
quatrocentos anos após a morte de Abraão não para afastar de Cristo o povo
eleito; pelo contrário, para que mantivesse as mentes suspensas até sua vinda,
até mesmo lhe acendesse o desejo e na expectação os firmasse, para que não
esmorecessem por uma demora mais longa. Pelo termo lei entendo não apenas os
Dez Mandamentos, que prescrevem a norma de viver piedosa e justamente, mas
também a forma de religião por Deus transmitida pela mão de Moisés. Pois, nem
foi Moisés constituído legislador para que cancelasse a bênção prometida à raça
de Abraão; pelo contrário, vemos que, a cada passo, traz de novo à lembrança
aos judeus, como se tivesse sido enviado a fim de renovar esse pacto gracioso
feito com seus pais, do qual eram herdeiros. Isto se fez mui
claramentemanifesto à luz das cerimônias veterotestamentárias. Ora, que mais
inútil ou frívolo que, a fim de se reconciliarem com Deus, oferecerem os homens
o fétido odor a desprender-se da gordura de animais a fim de expurgar-se de
suas imundícies, e a recorrerem à aspersão de água e de sangue? Em suma, todo o
sistema cultual da lei, se é considerado em si, nem mesmo contém sombras e
figuras a que corresponda a verdade, será coisa inteiramente risível. Pelo que,
não sem causa, tanto no discurso de Estêvão [At 7.44], quanto na Epístola aos
Hebreus [8.5], é tão diligentemente ponderada aquela passagem onde Deus ordena
a Moisés que tudo quanto dizia respeito ao tabernáculo o fizesse em
conformidade com o modelo que lhe havia sido mostrado no monte [Ex 25.40]. Ora,
a não ser que fosse proposto algo espiritual, a que se inclinassem, os judeus
não teriam se afadigado mais nesses cerimoniais do que os gentios em suas ninharias.
Os homens profanos, que jamais se entregaram seriamente ao zelo da piedade, não
conseguem ouvir sem fastídio a tão multíplices ritos, nem só se maravilham por
que Deus haja fatigado ao povo antigo com tão grande acervo de cerimônias, mas
ainda as desprezam e delas mofam como se fossem divertimentos infantis. Isto,
na verdade, porque não
atentam para o fim, do qual as prefigurações da lei se destacam, têm-se
necessariamente de condenar como futilidade. Com efeito, aquele modelo supra
referido mostra que Deus não ordenou os sacrifícios para que ocupasse seus
adoradores em exercícios terrenos, mas, antes, para que mais alto lhes elevasse
a mente. O que se pode claramente constatar até mesmo de sua própria natureza,
posto que, como é espiritual, não se agrada de outro culto que não seja
espiritual. Comprovam isto tantas afirmações dos profetas, com as quais acusam
os judeus de estultície, porquanto pensam ser de algum valor diante de Deus
qualquer sacrifício. Porventura é porque o intento derroga alguma coisa à lei?
De modo algum. Pelo contrário, visto que eram seus verdadeiros intérpretes,
quiseram que desse modo fossem os olhos dirigidos para o escopo do qual o povo
comum estava se desviando. Já da graça oferecida aos judeus conclui-se com
certeza que a lei não havia sido vazia de Cristo, pois Moisés lhes propôs esta
finalidade da adoção: que fossem um reino sacerdotal a Deus [Êx 19.6], o que
não podiam alcançar, salvo se uma reconciliação se interpusesse, maior e mais
excelente que de sangue de animais[Hb 9.12- 14]. Ora, a não ser que tão
excelente bem lhes proviesse de outra parte que não de si mesmos, que é menos
congruente que serem elevados à régia dignidade, e desse modo os filhos de Adão
se fazerem participantes da glória de Deus, que de mácula hereditária nascem
todos na servidão do pecado? Também, como pôde vigorar o direito de sacerdócio
entre aqueles que, pela sordidez das transgressões, eram abomináveis a Deus, a
não ser que fossem consagrados em uma Cabeça Santa? Por isso, com muita
propriedade, Pedro converte esse postulados de Moisés, ensinando ter sido
exibida em Cristo a plenitude da graça, cujo gosto os judeus haviam provado sob
a lei: “Vós sois a raça eleita”, diz ele, “o sacerdócio real” [1Pe 2.9]. Ora, a
reversão dos termos aponta para isto: terem alcançado mais aqueles a quem
Cristo apareceu mediante o evangelho do que seus pais, pois que todos foram
dotados da dignidade sacerdotal e real, de sorte que, confiados em seu
Mediador, ousem achegar-se livremente à presença de Deus.
João
Calvino