Com efeito, se bem que a lei inteira
foi contida nesses dois tópicos, entretanto, para que removesse todo pretexto
de escusa, nosso Deus quis expor mais difusa e explicitadamente em dez
mandamentos, quer tudo quanto lhe diz respeito à honra, ao temor, ao amor, quer
o que concerne à caridade que, em relação aos homens, nos ordena por amor de si
mesmo. Nem é mal aplicado o esforço em diligenciar conhecimento da divisão dos
mandamentos, desde que lembres ser coisa desse gênero em que a opinião de cada
um deva ser livre, em função da qual não se deve litigar contenciosamente com
quem dissinta. Este ponto tem de ser, por certo, por nós necessariamente
abordado, para que os leitores não se riam, nem se admirem da divisão que
estamos para propor, como se fosse nova e recentemente cogitada. Está além de
qualquer dúvida que a lei é dividida em dez preceitos, uma vez que isto se
comprova freqüentemente pela autoridade do próprio Deus. Porquanto disputa-se
não quanto ao número, mas acerca da maneira de dividir os mandamentos. Aqueles
que assim os dividem, que conferem três mandamentos à primeira tábua e relegam
os sete restantes à segunda, eliminam do número o mandamento referente às
imagens, ou, quando menos, o ocultam debaixo do primeiro, quando não foi dúbia
e distintamente expresso pelo Senhor como um mandamento específico, enquanto
dividem improcedentemente em dois o décimo, quanto a não cobiçar as coisas do
próximo. Acresce que ter sido tal maneira de dividi-los desconhecida em uma era
mais pura, logo se perceberá.
Outros enumeram conosco quatro artigos
na primeira tábua, mas em lugar do primeiro mandamento colocam a promessa, sem
o preceito. Eu, porém, porque, a não ser que seja convencido por razão
evidente, tomo as “dez palavras” em Moisés como os Dez Mandamentos, e a mim me
parece vê-los dispostos precisamente na mais excelente ordem, permitida a eles
sua opinião, seguirei o que a mim mais se recomenda, a saber, que o que esses
tomam como sendo o primeiro mandamento, tem o lugar de prefácio à lei como um
todo. Seguem, então, os mandamentos: quatro da primeira, seis da segunda tábua,
ordem em que serão considerados. Orígenes166 transmitiu esta divisão sem
controvérsia, exatamente como fora recebida indistintamente em seu tempo.
Sufraga-a também Agostinho167 escrevendo a Bonifácio, o qual conserva esta
ordem na enumeração: que se sirva ao Deus único com a obediência da religião,
que não se adore um ídolo, que não se tome em vão o nome do Senhor, quando
antes falara separadamente acerca do mandamento figurativo do Sábado. Em outro
lugar, é verdade, lhe sorri aquela primeira divisão, todavia por uma razão
demasiadamente trivial, a saber, que no número ternário (se a primeira tábua se
compõe de três mandamentos) tranluz ainda mais o mistério da Trindade. Contudo,
nem ali disfarça que, em outros aspectos, que a nossa lhe agrada mais. Além
desses, conosco está o autor da obra inacabada acerca de Mateus.168 Josefo,169
sem dúvida com base no consenso comum de seu tempo, atribui cinco mandamentos a
cada tábua, o que nisto conflita com a razão: que elimina a distinção de
religião e caridade; ademais, é refutado pela autoridade do Senhor, que em
Mateus [19.19] coloca no rol da segunda tábua o mandamento de honrar os pais.
Ouçamos agora Deus mesmo a falar com suas próprias palavras.
João
Calvino