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segunda-feira, 23 de julho de 2018

A CORRETA INTERPRETAÇÃO DOS MANDAMENTOS


Seja-nos esta a segunda observação, a saber, que subsiste sempre nos mandamentos e proibições mais do que se expressa nas simples palavras, o que, entretanto, se deve assim temperar para que não nos seja uma como que régua lésbia, apoiados na qual, torcendo desenfreadamente a Escritura, façamos o que bem quisermos de toda e qualquer coisa. Ora, mediante esta imoderada liberdade de divagar, certos indivíduos fazem com que a alguns se lhes envileça a autoridade da lei, a outros se ponha por terra a esperança de entendê-la. Portanto, se isso pode acontecer, deve-se tomar algum caminho que nos conduza, com passo reto e firme, à vontade de Deus. Impõe-se indagar, digo-o, até onde a interpretação deva ir além dos limites dos termos, de sorte que se ponha à mostra que não é um apêndice de glosas humanas aposto à lei divina, mas o puro e genuíno sentido do Legislador fielmente exposto. Indubitavelmente, em quase todos os mandamentos há tão evidentes sinédoques que, merecidamente, haverá de ser objeto de galhofa quem queira confinar o sentido da lei aos estreitos limites dos termos. Daí, é óbvio que a sóbria interpretação da lei vai além das palavras. Até que ponto, entretanto, permanece obscuro, salvo se alguma norma for estabelecida. Logo, julgo que esta haverá de ser a melhor norma: caso se atente para a razão do mandamento, isto é, que se pondere em relação a cada mandamento por que nos foi ele dado. Por exemplo: todo mandamento ou é imperativo, ou proibitivo. De um e outro tipo a verdade ocorre imediatamente, se lhe contemplamos a razão, ou o propósito. Assim, o propósito do Quinto Mandamento é que se deve render honra àqueles a quem Deus a atribui. Portanto, esta é a síntese do mandamento: ser justo e agradar a Deus que honremos aqueles a quem ele tem prodigalizado algo de excelência; ser-lhe para abominação o desprezo e a contumácia para com eles. Do primeiro mandamento a razão é que somente Deus seja adorado [Ex 20.2, 3; Dt 6.4, 5]. Portanto, a síntese deste mandamento será que a Deus apraz a verdadeira piedade, isto é, o culto de sua divina majestade, e que ele abomina a impiedade. Portanto, deve-se examinar em cada mandamento de que assunto se trata; em seguida, deve buscar-se seu propósito, até que descubramos o que propriamente o Legislador certifique aí agradar-lhe ou desagradar-lhe. Por fim, disto mesmo se deve extrair um arrazoado em contrário, deste modo: se isto agrada a Deus, o contrário lhe desagrada; se isto lhe desagrada, o contrário lhe agrada; se ele ordena isto, então proíbe o contrário; se proíbe isto, então ordena o contrário.

João Calvino