Seja-nos esta a segunda observação, a
saber, que subsiste sempre nos mandamentos e proibições mais do que se expressa
nas simples palavras, o que, entretanto, se deve assim temperar para que não
nos seja uma como que régua lésbia, apoiados na qual, torcendo desenfreadamente
a Escritura, façamos o que bem quisermos de toda e qualquer coisa. Ora,
mediante esta imoderada liberdade de divagar, certos indivíduos fazem com que a
alguns se lhes envileça a autoridade da lei, a outros se ponha por terra a
esperança de entendê-la. Portanto, se isso pode acontecer, deve-se tomar algum
caminho que nos conduza, com passo reto e firme, à vontade de Deus. Impõe-se
indagar, digo-o, até onde a interpretação deva ir além dos limites dos termos,
de sorte que se ponha à mostra que não é um apêndice de glosas humanas aposto à
lei divina, mas o puro e genuíno sentido do Legislador fielmente exposto.
Indubitavelmente, em quase todos os mandamentos há tão evidentes sinédoques que,
merecidamente, haverá de ser objeto de galhofa quem queira confinar o sentido
da lei aos estreitos limites dos termos. Daí, é óbvio que a sóbria
interpretação da lei vai além das palavras. Até que ponto, entretanto,
permanece obscuro, salvo se alguma norma for estabelecida. Logo, julgo que esta
haverá de ser a melhor norma: caso se atente para a razão do mandamento, isto
é, que se pondere em relação a cada mandamento por que nos foi ele dado. Por
exemplo: todo mandamento ou é imperativo, ou proibitivo. De um e outro tipo a
verdade ocorre imediatamente, se lhe contemplamos a razão, ou o propósito.
Assim, o propósito do Quinto Mandamento é que se deve render honra àqueles a
quem Deus a atribui. Portanto, esta é a síntese do mandamento: ser justo e agradar a Deus que honremos
aqueles a quem ele tem prodigalizado algo de excelência; ser-lhe para
abominação o desprezo e a contumácia para com eles. Do primeiro mandamento a
razão é que somente Deus seja adorado [Ex 20.2, 3; Dt 6.4, 5]. Portanto, a
síntese deste mandamento será que a Deus apraz a verdadeira piedade, isto é, o
culto de sua divina majestade, e que ele abomina a impiedade. Portanto, deve-se
examinar em cada mandamento de que assunto se trata; em seguida, deve buscar-se
seu propósito, até que descubramos o que propriamente o Legislador certifique
aí agradar-lhe ou desagradar-lhe. Por fim, disto mesmo se deve extrair um
arrazoado em contrário, deste modo: se isto agrada a Deus, o contrário lhe
desagrada; se isto lhe desagrada, o contrário lhe agrada; se ele ordena isto,
então proíbe o contrário; se proíbe isto, então ordena o contrário.
João
Calvino