Lançada e firmada solidamente a
autoridade de sua lei, Deus enuncia o primeiro mandamento, a saber: que não
tenhamos deuses estranhos diante de sua face [Ex 20.3]. O fim deste mandamento
é que Deus quer ser o único a ter a preeminência em seu povo e nele exercer seu
direito em plena medida. Para que isso aconteça, ordena que estejam longe de
nós a impiedade e toda e qualquer superstição, em virtude da qual ou se diminui
ou se obscurece a glória de sua divindade. E, pela mesma razão, prescreve que o
cultuemos e o adoremos com o verdadeiro zelo da piedade. E a própria
simplicidade das palavras soa quase que isto, porquanto não podemos ter Deus
sem que, ao mesmo tempo, abracemos as coisas que lhe são próprias. Portanto, o
fato de proibir que tenhamos deuses estranhos, com isto significa que não
devemos transferir para outrem o que lhe é exclusivo. Mas, ainda que sejam
inúmeras as coisas que devemos a Deus, contudo a quatro tópicos se podem muito
bem mencionar: Adoração, a que se anexa como um apêndice a obediência
espiritual da consciência, confiança, invocação e ação de graças. Chamo
adoração a veneração e o culto que qualquer um de nós lhe rende, quando se lhe
submete à grandeza. Por isso, não improcedentemente, incluo à adoração a
submissão de nossa consciência à sua lei. Confiança é a segurança de nele
descansar, em virtude do reconhecimento de seus predicados, quando,
atribuindolhe toda sabedoria, justiça, poder, verdade, bondade, reconhecemos
que somos bemaventurados somente em sua comunhão. Invocação é o recurso de
nossa mente à sua fidelidade e assistência, como ao sustentáculo único, sempre
que alguma necessidade insiste. Ação de graças é a gratidão com que se lhe
atribui o louvor de todo bem. Como o Senhor não pode consentir que nenhuma
destas coisas seja atribuída a alguém além dele,171 assim ordena que tudo seja
aplicado inteiramente a ele. Ora, nem será suficiente abster-te de um deus
estranho, a não ser que te refreies exatamente doque certos desprezadores
nefários costumam fazer, a quem o máximo proveito é ter em zombaria todas as
religiões. Com efeito, importa que se anteponha a verdadeira piedade, em
virtude da qual as mentesse volvam para o Deus vivo, imbuídas de cujo
conhecimento, aspirem a contemplar, a temer, a adorar-lhe a majestade, a abraçar a comunicação de suas
bênçãos, a buscar-lhe em tudo a assistência, a reconhecer e celebrar com a
confissão do louvor a magnificência de suas obras, como o escopo único em todas
as ações da vida. Então, precavenha-se a superstição da impiedade pela qual as
mentes alienadas do Deus verdadeiro são arrastadas, para cá e para lá, em busca
de deuses vários. Daí, se estamos contentes com o Deus único, recordemos o que
foi dito antes: que devem ser alijados para bem longe todos os deuses
fictícios, nem se deve cindir o culto que ele reivindica para si com
exclusividade, pois que nem é seguro detrair-lhe da glória, mesmo que seja uma
mínima porção, quando nele devem permanecer todas e quaisquer coisas que lhe
são exclusivas. A frase que segue, diante de minha face, intensifica a
indignidade, pela qual Deus é provocado ao ciúme sempre que em seu lugar pomos
nossas invenções, tal como se uma esposa despudorada, trazido escancaradamente
o amante diante dos olhos do marido, mais lhe incendesse o ânimo. Portanto,
quando, por seu manifesto poder e graça, dava Deus prova de que ele atentava
para o povo que havia escolhido, para que mais o arredasse do crime de
defecção, adverte-o de que não se podem admitir novas deidades sem que seja ele
testemunha e observador de seu sacrilégio. Mas, a esta petulância acrescenta-se
o máximo de impiedade, a saber, que, em seus desvios, o homem julga poder
burlar os olhos de Deus. Em contrapartida, proclama o Senhor que tudo quanto
cogitamos, tudo quanto empreendemos, tudo quanto executamos, é posto diante de
seus olhos. Portanto, se queremos que ao Senhor agrade aprovar nossa religião,
seja nossa consciência isenta até das cogitações mais recônditas de apostasia.
Pois ele requer que permaneça íntegra e incorrupta a glória de sua divindade,
não só na confissão externa, como também a seus olhos, os quais contemplam até
os mais recônditos recessos dos corações.
João
Calvino