A VONTADE HUMANA É CATIVA DO PECADO, ESCRAVIZADA AO DIABO
Foi suficientemente provado, salvo se
me engano, que o homem é de tal forma mantido cativo pelo jugo do pecado, que
de sua própria natureza não pode desejar o bem, nem aspirá-lo, nem esforçar-se
por ele. Ademais, estabeleceu-se uma distinção entre compulsão e necessidade,
donde se fizesse claro que, enquanto peca por necessidade, contudo em nada peca
ele menos por vontade. Uma vez que, porém, enquanto é o homem entregue à servidão
do Diabo, parece ser mais movido pelo arbítrio deste que por seu próprio, resta
que se deve determinar qual seja o gênero de ação de um e do outro, isto é, do
homem e do Diabo. Então, deve resolver-se a questão, se algo deva ser atribuído
a Deus nas obras más em que a Escritura dá a entender que de alguma forma ele
opera nelas. Em algum lugar, Agostinho compara a vontade humana a um corcel a
aguardar o mando do cavaleiro; ele compara aos que o cavalgam a Deus ou ao
Diabo. “Se Deus o monta”, diz ele, “tal qual moderado e perito ginete, com arte
a dirige, a lerdeza acicata, a excessiva rapidez contém, o ardor e a fogosidade
refreia, a obstinação reprime, pelo reto caminho conduz. Se, porém, dela se
apossou o Diabo, como um cavaleiro estouvado e petulante, por extensões não
trilhadas a arrebata, a valados impele, por despenhadeiros precipita, à
insujeição e à altivez aguilhoa.” Por ora estaremos satisfeitos com esta
comparação, já que não ocorre melhor. Portanto, que se diz estar a vontade do
homem natural sujeita ao jugo do Diabo, tanto que daí é acionada, não significa
que ela seja constrangida à obediência, relutante e renitente, como, por
direito de senhorio, obrigamos a escravos indispostos a obedecerem a nossas
ordens; pelo contrário, fascinada pelas artimanhas de Satanás, mostra-se-lhe
necessariamente obediente a todo ditame. Ora, aqueles a quem o Senhor não faz
dignos da direção de seu Espírito, por justo juízo os relega à ação de Satanás.
Razão por que o Apóstolo diz [2Co 4.4] que o deus deste mundo cegou a mente dos
incrédulos, destinados à perdição, para que não discirnam a luz do evangelho.
E, em outro lugar [Ef 2.2], diz que ele opera nos filhos contumazes. O
cegamento dos ímpios e quantas abominações daí se seguem são rotulados de obras
de Satanás, cuja causa, no entanto, não se deve buscar fora da vontade humana,
da qual brota a raiz do mal
e na qual repousa o fundamento do reino de Satanás, isto é, o pecado.
João
Calvino