Afirmam que, se não procedem da livre
escolha do arbítrio, sejam as virtudes, sejam os vícios, não é congruente que
ao homem se inflija castigo, ou se outorgue recompensa. Embora seja de Aristóteles
este argumento, contudo reconheço ser usado em algum lugar por Crisóstomo e
Jerônimo. Entretanto, o fato de o mesmo ter sido familiar aos pelagianos, nem
mesmo o próprio Jerônimo o esconde, e inclusive lhes atribui os termos: “Pois
se em nós opera a graça de Deus, então é ela que será coroada, não nós que não
laboramos.” Em relação aos castigos, responde que eles nos são infligidos com
justiça, infligidos a nós de quem emana a culpa do pecado. Ora, que importa se
de livre ou servil juízo se peque, contanto que o seja pelo desejo da vontade,
especialmente quando o homem, como pecador, argumenta com base nisto: que está
debaixo da servidão do pecado? Quanto aos galardões da retidão, de fato é
grande absurdo se confessamos que eles dependem da benignidade de Deus, antes
que dos próprios méritos? Quantas vezes Agostinho recorre a isto: “Deus não
coroa a nossos méritos, mas a seus próprios dons; galardões, porém, se chamam
aqueles que não se devem a nossos méritos; ao contrário, que são retribuídos por
graças já outorgadas”? Com agudeza, sem dúvida, advertem para isto: já nenhum
lugar sobra aos méritos, se não procedem da fonte do livre-arbítrio; visto,
porém, que consideram isto de forma tão dissentânea, erram gravemente. Pois
Agostinho não hesita, a cada passo, em ensinar como sendo necessário o que
assim pensam confessar-se impiamente, como onde diz: “Quais são os méritos de
todo e qualquer homem? Quando ele vem com recompensa não devida, ao contrário,
com graça gratuita, unicamente como livre e libertador dos pecados, a todos
acha pecadores.” De igual modo: “Se a ti se houver de pagar o que é devido,
punido terás de ser. Portanto, que acontece? Deus não te pagou a pena devida;
pelo contrário, confere graça não devida. Se queres ser estranho à graça, vangloria-te
de teus méritos.” Igualmente: “Por ti mesmo nada és: os pecados são teus; os
méritos, porém, são de Deus; o castigo te é devido, e quando vier a recompensa estará
coroando a seus dons, não a teus méritos.”110 No mesmo sentido, Agostinho
ensina, em outro lugar, que a graça não procede do mérito, mas o mérito, da
graça. E, pouco depois, conclui que Deus precede a todos os méritos com seus
dons, para que daí sobreleve seus méritos, e os dá inteiramente de graça,
porquanto nada acha no homem para que o salve. Mas, por que é tão necessário
tecer catálogo mais longo, quando afirmações tais recorrem, incessantemente, em
seus escritos?Com efeito, o Apóstolo ainda melhor os livrará deste erro, se
porventura ouvirem de que princípio deriva ele a glória dos santos: “Aqueles a
quem escolheu, os chamou; aos que chamou, os justificou; aos que justificou, os
glorificou” [Rm 8.30]. Por que, pois, segundo o testifica o Apóstolo [2Tm 4.8],
os fiéis são coroados? Porque, pela misericórdia do Senhor, não por sua própria
diligência, foram não só eleitos, mas ainda chamados e justificados. Fora,
pois, com este fútil temor de que se já não existe nenhum mérito, então nenhum
arbítrio pode subsistir. Ora, tomar-se de medo e fugir disto é estultíssimo, com
que nos chama a Escritura: “Se”, diz ele, “tudo recebeste, por que te glorias,
como se o não houveras recebido?” [1Co 7.14]. Por isso podes ver que ele tudo
subtrai ao livre-arbítrio, para que não fique aos méritos lugar algum. Não
obstante, uma vez que a benignidade e liberalidade de Deus são inesgotáveis e
multíplices, porque faz nossas as graças que nos confere, as recompensa
exatamente como se fossem virtudes nossas.
João
Calvino