Em nada é mais branda a condenação do
coração, quando se diz ser enganoso acima de todas as coisas e depravado [Jr
17.9]. Mas, visto que estou tentando ser breve, contentar-me-ei com apenas uma
passagem, a qual, no entanto, haverá de ser como um espelho caríssimo, em que
contemplamos a imagem integral de nossa natureza. Ora, o Apóstolo, quando quer
lançar por terra a arrogância do gênero humano, o faz com estes testemunhos [Rm
3.10-16, 18]: “Pois não há nenhum justo, não há quem tenha entendimento, ou que
busque a Deus; todos se desviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o
bem, nem um sequer” [Sl 14.1-3; 53.1-3]; “sepulcro aberto é a garganta deles;
com suas línguas agem dolosamente” [Sl 5.9]; “veneno de áspides há debaixo de
seus lábios” [Sl 140.3]; “dos quais a boca está cheia de maldição e amargor”
[Sl 10.7]; “cujos pés são velozes para derramar sangue; em cujas veredas há
destruição e infortúnio” [Is 59.71]; “diante de cujos olhos não há temor de
Deus” [Rm 3.18]. Com esses raios, o Apóstolo não está investindo apenas contra
certos homens, mas contra toda a raça dos filhos de Adão. Nem está ele a
censurar os costumes depravados de uma ou outra era, mas está acusando a
perpétua corrupção de nossa natureza. Com efeito, nesta passagem, seu propósito
não é simplesmente censurar os homens,
para que caiam em si, mas, antes, ensinar que todos têm sido acossados de
inelutável calamidade, da qual não podem sair, a não ser que sejam retirados
pela misericórdia de Deus. Visto que isso não podia ser provado, a não ser que
fosse estabelecido da ruína e destruição de nossa natureza, trouxe ele à baila
estes testemunhos, mediante os quais se convence de que nossa natureza está
mais do que perdida. Portanto, fique isto demonstrado: os homens são tais quais
aqui descritos, não apenas pelo vezo do costume depravado, mas ainda pela
depravação de sua natureza. Porquanto não se pode de outra forma sustentar a
argumentação do Apóstolo: não há para o homem nenhuma salvação, senão pela
misericórdia do Senhor, porquanto, em si, ele está inexoravelmente perdido. Não
me darei aqui ao trabalho de provar a aplicabilidade desses testemunhos, para
que não pareçam, aos olhos de alguém,64 indevidamente usados pelo Apóstolo.
Procederei exatamente como se essas coisas fossem originalmente ditas por
Paulo, não tomadas dos profetas. Ele priva o homem, de início, da justiça, isto
é, da integridade e da pureza; a seguir, do entendimento [Rm 3.10, 11]. Ora, a
carência de entendimento é demonstrada pela apostasia para com Deus, a busca de
quem é o primeiro degrau da sabedoria. Mas essa deficiência necessariamente se
acha naqueles que se têm afastado de Deus. Acrescenta em seguida que todos se
têm transviado e se têm tornado como que putrefatos, que nenhum há que faça o
bem; então adiciona as ignomínias com as quais contaminam a cada um de seus
membros aqueles que uma vez se espojaram na dissolução. Finalmente, atesta que
são vazios do temor de Deus, o que deveria ser a regra a dirigir-nos os
passos.65 Se forem estes os dotes hereditários do gênero humano, em vão se
busca algo de bom em nossa natureza. Reconheço, sem dúvida, que nem todas estas
abominações vêm à tona em cada ser humano, entretanto não se pode negar que
esta hidra jaz oculta no coração de cada um. Ora, como o corpo, quando já
mantém incubada em si a causa e matéria de uma doença, se bem que ainda não
efervesça a dor, por isso não se julgará ser sã nem mesmo a alma, enquanto
borbulha em tais achaques de vícios, embora a comparação não se enquadre em
todos os aspectos, porque, no corpo, por mais enfermo, subsiste um alento de
vida; a alma, porém, imersa neste abismo fatal, não só padece desses achaques,
mas ainda é inteiramente vazia de todo bem.
João
Calvino