O terceiro uso, que não só é o
principal, mas ainda contempla mais de perto ao próprio fim da lei, tem lugar
em relação aos fiéis, em cujo coração já vigora e reina o Espírito de Deus.
Pois ainda que têm a lei escrita e gravada pelo dedo de Deus no coração [Jr
31.33; Hb l0.16], isto é, têm sido afetados e animados pela direção do Espírito
a tal ponto que desejem obedecer a Deus, contudo têm ainda duplo proveito na
lei. Pois a lei lhe é o melhor instrumento mediante o qual melhor aprendam cada
dia, e com certeza maior, qual é a vontade de Deus, a que aspiram, e se lhe
firmem na compreensão. É como se um serviçal qualquer já esteja de tal modo
preparado, com todo o empenho do coração, para que seja aprovado por seu
patrão, contudo tem necessidade de investigar e observar mais acuradamente os
costumes do patrão aos quais se ajuste e acomode. Não que desta necessidade se
exime qualquer de nós, pois que ninguém até agora penetrou tanto a sabedoria
que não possa da instrução diária da lei fazer novos progressos no conhecimento
mais puro da vontade divina. Em segundo lugar, visto que necessitamos não só de
ensinamento, mas ainda de exortação, o servo de Deus tirará ainda esta
utilidade da lei para que, mediante sua freqüente meditação, seja incitado à
obediência, nela seja consolidado e seja impedido de transgredir neste caminho
escorregadio. Pois nesta disposição convém que os santos persistam para que,
por grande que seja o ânimo com que, segundo o Espírito, se empenham para com a
justiça de Deus, entretanto são sempre onerados pela inércia da carne para que
não prossigam com a devida prontidão. A esta carne a lei é um chicote no uso do
qual, como no caso de um asno estacado e lerdo, sejam estimulados à ação. Até
mesmo ao homem espiritual, visto que ainda não foi desvencilhado do fardo da
carne, a lei lhe será um acicate constante a não permitir que fique ele inerte.
Sem dúvida, Davi atentava para este uso quando celebrava a lei com esses
insignes encômios: “A lei do Senhor é imaculada, convertendo almas; as justiças
do Senhor são retas, alegrando corações; o preceito do Senhor é luminoso, iluminando
os olhos” etc. [Sl 19.8, 9]. Ainda: “Lâmpada para meus pés é tua palavra e luz
para minhas veredas” [Sl 119.105]; e as inúmeras outras declarações que seguem
em todo esse Salmo. Com efeito, tampouco estas contradizem as declarações
paulinas nas quais se mostra não que uso a lei presta aos regenerados, mas, em
contrário, o que pode ela de si mesma conferir ao homem. Aqui, porém, o Profeta
canta com quão grande utilidade o Senhor instrui pela leitura de sua lei
àqueles a quem inspira interiormente a prontidão de obedecer. E não faz apenas
menção dos preceitos; pelo contrário, também da promessa da graça que acompanha
as coisas, a qual faz com que o que é amargo se torne doce. Pois, o que é menos
aprazível que a lei, se, simplesmente importunando e ameaçando, perturbe as
almas pelo medo e as angustie pelo pavor? Davi, porém, mostra especialmente que
na lei ele havia apreendido ao Mediador, sem o qual não há nenhum desfruto ou
doçura.
João
Calvino