Reportam também ao Eclesiástico, não
obstante, como se sabe, seu autor é de autoridade duvidosa. Contudo, para que
não seja por nós repudiado, o que, entretanto, nos é de direito, que ele
testemunha em favor do livre-arbítrio? Diz que o homem, imediatamente após ser
criado, foi deixado ao sabor de seu alvitre; foram- lhe dados preceitos que, se os guardasse, em
contrapartida seria por eles guardado; a vida e a morte, o bem e o mal foram
postos diante do homem; qualquer que viesse a querer, lhe seria dado, a saber:
o homem recebeu, em sua criação, a capacidade de granjear a vida ou a morte. E
se, em contrapartida, respondermos que ele a perdeu? Certamente que não é
minha intenção contradizer a Salomão, que declara que o homem foi,
inicialmente, criado reto, mas que ele próprio engendrou para si muitas
invencionices [Ec 7.29]. No entanto, uma vez que, em conseqüência de sua
degeneração, o homem fez naufrágio não só de si próprio, mas também de todas as
coisas boas que em si havia, qualquer coisa que lhe é atribuída, provinda da
criação original, não mais compete à natureza viciada e degenerada. Portanto,
respondo não apenas a esses, mas ainda ao próprio Eclesiástico, quem quer que
tenha sido, afinal: Se queres instruir ao homem a que busque em si mesmo a
capacidade de adquirir a salvação, tua autoridade não nos é de tão grande
alcance, sequer um mínimo grau, que possa prejudicar a Palavra de Deus que é
perfeita. Se, porém, estás a esforçar-te para simplesmente coibir a malignidade
da carne, que costuma forjarvã defesa para transferir a Deus suas coisas más, e
por isso respondes que a retidão foi conferida ao homem, para que se ponha à mostra
que ele pessoalmente é a causa de sua ruína, de bom grado concordo, contanto
que, por outro lado, isto fique firmado entre mim e ti, que agora, por sua
culpa, o homem foi despojado desses ornamentos com que, de início, o Senhor o
havia dotado; e assim, igualmente confessemos que ele agora está precisando de
médico, não de advogado.
João
Calvino