Argúem também da forma costumeira de
falar, que se observa tanto nas Escrituras quanto nas conversações dos homens,
isto é, que a nós, na verdade, são designadas as boas obras, e que se nos exige
fazer o que é santo e agradável ao Senhor, bem como que cometemos pecado.
Porque, se com justiça se nos imputam os pecados como provindos de nós, por
certo que, pela mesma razão, algo deverá ser-nos atribuído também nas ações
retas. Ora, nem seria consistente com a razão dizer que fazemos as coisas que
Deus nos move a fazer, se por nós mesmos somos tão incapazes de fazê-las, como
uma pedra. Portanto, embora demos à graça de Deus o papel principal, entretanto
essas expressões indicam que temos nossa participação ao menos em papel
secundário. Se porventura se alegasse este ponto único, a saber: que se dizem
nossas as boas obras, eu, por minha vez, objetaria que se diz nosso o pão que
rogamos que Deus nos dê [Mt 6.11]. Que haverão de entender do pronome
possessivo, senão que, de modo algum, o que se nos deve de outra maneira, nosso
se faz pela benignidade de Deus e por seu gratuito favor? Portanto, admitem o
mesmo absurdo na oração do Senhor, a saber, que não têm por coisa nova que se
chamem nossas as boas obras, nas quais o único título para que sejam nossas é a
liberalidade de Deus. Com efeito, um tanto mais forte é esta segunda objeção:
que a Escritura, com freqüência, afirma que nós, de nós mesmos, adoramos a
Deus, preservamos a justiça, obedecemos à lei, somos zelosos em boas obras. Uma
vez que estas são funções próprias da mente e da vontade, como conviria
atribuir estas coisas ao Espírito e, ao mesmo tempo, nos serem atribuídas, a
não ser que houvesse certa conjunção de nosso esforço com o poder divino?
Dessas futilidades nos desvencilhamos sem qualquer dificuldade, se ponderamos
apropriadamente a maneira em que o Espírito do Senhor opera nos santos. É
improcedente aquela comparação com que odientamente nos rotulam, pois quem
carece de entendimento a tal ponto que creia que o impulso de um homem nada difere do arremesso de uma
pedra? Na verdade, de nossa doutrina não se deduz nada que seja semelhante.
Entre as faculdades naturais do homem nos reportamos ao aprovar, ao rejeitar;
ao querer, ao não querer; ao esforçar-se por, ao resistir a; isto é, aprovar o
que é fátuo, rejeitar o que é essencialmente bom; querer o mal, não querer o
bem; fazer esforços em relação à iniqüidade, resistir à retidão. Que faz aqui o
Senhor? Se quer utilizar-se de depravação desta natureza como instrumento de
sua ira, a dirige e a dispõe como bem lhe aprouver, para que execute sua boa
obra através de mão ímpia. Portanto, o homem celerado que, enquanto diligencia
por obedecer apenas à sua concupiscência, assim serve ao poder de Deus,
porventura o compararemos com uma pedra que, acionada por impulso alheio, não é
impelida nem por motilidade, nem por sensibilidade, nem por vontade própria?
Vemos, pois, a grande diferença que existe! Quanto aos bons, porém, acerca de
quem é aqui a questão principal? Quando seu reino neles implanta, para que não
seja, em função da inclinação da natureza, em todas as direções arrebatada de
paixões estuantes, mediante seu Espírito coíbelhes a vontade; para que propenda
à santidade e à justiça, à norma de sua justiça a curva, afeiçoa, plasma, dirige;
para que não vacile ou caia, pelo poder de seu Espírito a sustém e firma. Por
essa razão, diz Agostinho: “Dir-me-ás: Portanto, não agimos, sofremos ação.
Pelo contrário, ages e sofres ação, e então ages bem, se do bom estás a sofrer
a ação. O Espírito de Deus que age sobre ti é ajudador dos que agem. O
designativo ajudador prescreve que também tu ajes em certa medida.” No primeiro
membro dessa alternância inculca ele que a ação do homem não é suprimida pela
atuação do Espírito Santo, por isso que a vontade, que é regida para que aspire
ao bem, lhe é da própria natureza. Mas, o que logo a seguir acrescenta, pode-se
inferir do termo “ajuda” que também algo efetuamos, não convém entender assim,
como se a cada um nos esteja a atribuir algo de si. Mas para que não fomente em
nós a indolência, assim harmoniza a ação de Deus com a nossa: que o querer nos
é da natureza, o querer bem, no entanto, nos é da graça. Por isso, dissera
pouco antes: “A não ser que Deus nos venha em auxílio, não só não poderemos vencer,
mas nem mesmo lutar.”
João
Calvino