Quanto à perseverança, não deveria
restar mais dúvida de que ela deve ser tida por dom gratuito de Deus, não fora
o fato de haver prevalecido o perniciosíssimo erro de que esta é dispensada
segundo o mérito dos homens, conforme cada um não se mostre ingrato para com a
primeira graça. Ora, pois, uma vez que esse erro nasceu daí, a saber, que os
homens pensavam estar em nosso arbítrio rejeitar ou aceitar a graça de Deus
oferecida, refugada esta opinião, também aquele por si só se esboroa. Contudo,
aqui se erra de duas maneiras, a saber: além de ensinarem que nossa gratidão é
para com a primeira graça, e seu legítimo uso é remunerado por dons
subseqüentes, ainda acrescentam que a graça já não opera em nós sozinha, ao contrário,
ela é apenas cooperante. Quanto ao primeiro desses pontos, deve-se sustentar o
seguinte: enquanto a seus servos dia a dia os enriquece e de novas dádivas de
sua graça os cumula, visto que tem por grata e aceitável a obra que neles
começou, neles o Senhor acha o que será acompanhado de maiores graças. E a isto
se aplicam estas afirmações: “Ao que tem, dar-se-lhe-á” [Mt 25.29; Lc 19.26];
igualmente: “Muito bem, servo bom, porque foste fiel em umas poucas coisas,
sobre muitas te colocarei” [Mt 25.21, 23; Lc 19.17]. Aqui, porém, é preciso
precaver-se de duas coisas: que não se diga ou que o legítimo uso da primeira
graça é remunerado por graças subseqüentes, como se de sua própria diligência o homem tornasse eficaz a
graça de Deus, ou que seja de tal modo julgada a recompensa que deixe de ser
tida por graciosa mercê de Deus. Portanto, confesso que os fiéis devem esperar
esta bênção de Deus: quanto melhor uso fizerem das graças precedentes, de tanto
maiores bênçãos haverão de ser aumentadas a seguir. Todavia, afirmo que esse
uso também procede do Senhor, e que esta recompensa provém de sua graciosa
benevolência, e que usam perversamente, não menos que desgraçadamente, essa
desgastada distinção de graça operante e graça cooperante. É verdade que
Agostinho fez uso desta distinção, contudo atenuando-a com uma cômoda
definição: Deus executa, cooperando, o que começa, operando; e é a mesma graça,
porém muda o nome, conforme o diferente modo do efeito.88 Do quê se segue que
ele não está dividindo-a entre Deus e nós, como se do próprio movimento de um e
de outro houvesse mútua convergência; ao contrário, está assinalando a
multiplicidade da graça. A isto se aplica o que diz em outro lugar: a boa
vontade do homem precede as muitas dádivas de Deus, entre as quais está também
a própria boa vontade. Do quê se deduz que nada credita à vontade humana que
ela mesma possa arrogar para si com propriedade. O que também Paulo declarou
expressamente. Ora, depois de haver dito que Deus é quem opera em nós tanto o
querer quanto o executar, em seguida acrescentou que o Senhor, de sua boa
vontade, faz a ambos [Fp 2.13], significando por esta expressão que sua
benignidade é graciosa. A isto, porém, que costumam dizer, ou, seja, que depois
que dermos lugar à graça inicial, então nossos esforços cooperam com a graça
subseqüente, respondo: Nada reclamo se entendem que, desde quando, uma vez,
fomos pelo poder do Senhor subjugados à obediência da justiça, por nós mesmos
avançamos e somos inclinados a seguir a ação da graça, pois certíssimo é que
onde reina a graça de Deus existe essa prontidão de obedecer. Entretanto, donde
procede isso senão que o Espírito de Deus, sempre consistente consigo mesmo,
nutre e fortalece a constância da disposição de perseverar na obediência que
gerou a princípio? Ao contrário, se são de opinião que o homem possa presumir
de si mesmo capacidade para colaborar com a graça de Deus, enganam-se
pestilentissimamente.
João
Calvino