No entanto cita-se da lei de Moisés
uma passagemque parece ser muito contrária à nossa solução. Ora, aquele, depois
de promulgada a lei, por testemunha conclama ao povo desta maneira: “Este
mandamento que hoje te prescrevo não é obscuro, nem posto ao longe, nem situado
no céu, mas está junto de ti, em tua boca e em teu coração, para que o cumpras”
[Dt 30.11-14]. Por certo que, se estas coisas forem entendidas como enunciadas em
referência aos preceitos desnudos, confesso que nos veríamos em grande apuro
para responder. Ora, ainda que seja bastante fácil evadir a isso,
sustentando-se que aqui não se trata da capacidade e da disposição para a
observância, mas de conhecimento, contudo talvez assim deixassem também alguma
dúvida. Mas, de toda dúvida nos exime o Apóstolo, intérprete não ambíguo, que
afirma haver Moisés aqui falado acerca do ensino do evangelho [Rm 10.8]. Se,
entretanto, algum refratário contestar que essas palavras foram
violentamentetorcidas por Paulo, para que pudessem aplicar-se ao evangelho, se
bem que sua ousadia não carecerá de impiedade, contudo há como o tal pode ser
refutado, à parte da autoridade do Apóstolo. Ora, se Moisés falava somente dos
preceitos, então de mui vã confiança inflava o povo. Pois, que outra coisa
teriam feito, senão arrojar-se á ruína, se, como se lhes não fora difícil,
tivessem se arremetido à observância da lei por suas próprias forças? Portanto,
onde essa capacidade tão óbvia de observar a lei, quando nenhum acesso se
patenteia, senão por um precipício mortal?Logo, nada é mais certo do que Moisés
haver compreendido com estas palavras o pacto de misericórdia que havia
promulgado juntamente com a exação da lei. Ora, havia também ensinado, poucos
versos antes, a saber, que nos é indispensável que o coração seja circuncidado
pela mão de Deus, para que o amemos [Dt 30.6]. Conseqüentemente, esta
capacidade de que fala logo em seguida não a colocou no poder do homem, mas na
assistência e proteção do Espírito Santo, que em nossa fraqueza leva a bom
termo sua obra, poderosamente, embora não se deva entender esta passagem
simplesmente acerca dos preceitos; ao contrário, mais acerca das promessas do
evangelho, que, na verdade, em nós não consolidam a capacidade de alcançar a
justiça, senão que totalmente a destroem. Ponderando isto, Paulo confirma,
através desse testemunho, que no evangelho a salvação nos é proposta não sob
essa dura, árdua e impossível condição, segundo a qual age a lei conosco, isto é, que, afinal, a
atinjam aqueles que tiverem cumprido todos os mandamentos; mas, pelo contrário,
mediante uma condição fácil, pronta e de franco acesso. E assim, esta passagem
nada contribui para vindicar liberdade ao arbítrio humano.
João
Calvino