Entretanto, nada mais freqüentemente
se tem nos lábios que a parábola de Cristo acerca do viajor a quem ladrões
lançaram semivivo na estrada [Lc 10.30]. Sei que é muito comum a quase todos os
escritores fazerem representar sob a figura desse viajora calamidade do gênero
humano. Daí suscitam nossos adversários o argumento de que, visto que se diz
ter sido ele deixado semivivo, não foi o homem mutilado pelo assalto do pecado
e do Diabo a tal ponto que não retenha resquícios remanescentes das primeiras
boas coisas. Pois, onde está essa metade da vida, insistem, a não ser que
subsistisse alguma porção, seja de reta razão, seja de reta vontade? Em
primeiro lugar, o que diriam, se eu negar que há algum lugar para sua alegoria?
Ora, não lugar à dúvida de que essa interpretação foi cogitada pelos patrísti cos,
à parte do sentido claro da linguagem do Senhor. As alegorias não devem
ultrapassar os limites da norma que a Escritura lhes antepõe; pois longe estão
de ser suficientes e adequadas para servirem de base a qualquer doutrina.
Tampouco me faltam razões com que possa desmantelar toda esta urdidura, pois a
Palavra de Deus não deixa ao homem nem sequer meia vida; pelo contrário, ensina
que, no que tange à vida bem-aventurada, ele morreu completamente. Paulo,
enquanto está falando acerca de nossa redenção, os curados não são semivivos;
pelo contrário, uma vez que estávamos mortos, fomos ressuscitados [Ef 2.5]. Não
semivivos, mas adormecidos e sepultos, conclama Paulo, os que recebem a
iluminação de Cristo [Ef 5.14]; tampouco nosso Senhor diz de outro modo, quando
diz ter chegado a hora em que, à sua voz, os mortos ressurgirão [Jo 5.25]. Como
poderiam apresentar uma vã alegoria contra tão claros testemunhos da Escritura?
Valha, porém, esta alegoria por testemunho indubitável. Entretanto, o que
arrancarão de nós? O homem é semivivo, argumentam, logo tem algo preservado.
Por certo que sim. Tem ele mente capaz de entendimento, ainda que ela não
penetre até à sabedoria celeste e espiritual; tem algum discernimento de
honestidade, tem certa noção da divindade, ainda que não alcance ao verdadeiro
conhecimento de Deus. Mas, de que valem essas capacidades?Certamente não nos
exime desse parecer de Agostinho, aprovado, aliás, pelos sufrágios comuns das
escolas, a saber, que foram subtraídos ao homem, após a queda, os dons
graciosos de que depende para a salvação; corrompidos e poluídos, porém, foram
os dotes naturais. Portanto, indubitável nos é deixada esta verdade, a qual não
pode ser abalada por nenhuma máquina de guerra: a mente do homem, tão
inteiramente alienada está da justiça de Deus, que nada que não seja ímpio,
pervertido, imundo, impuro, infame conceba, deseje, busque fazer, tão
completamente besuntado está o coração do veneno do pecado, que nada pode
exalar senão o que é totalmente pútrido. Porque, se alguns ostentam, por vezes,
a aparência de bom, contudo a mente sempre permanece envolta em hipocrisia e
enganosa tortuosidade, a sensibilidade enlaçada de íntima perversidade.
João
Calvino