Impõe-se agora expor o que a razão
humana discerne quando se chega ao reino de Deus e àquela profunda visão
espiritual que consta principalmente de três coisas: conhecer a Deus, conhecer
seu paterno favor para conosco, no qual se nos firma a salvação, e conhecer a
maneira de plasmar a vida segundo a norma de sua lei. Quer nos primeiros dois
desses pontos, quer, porém, especialmente no segundo, aqueles que dentre os
homens são os mais talentosos, são mais cegos que as toupeiras. Sem dúvida não
nego que, aqui e ali, douta e aptamente se lêem nos filósofos certos ditos
acerca de Deus, ditos esses que, entretanto, sempre tresandam a uma imaginação
um tanto estonteada.
Por certo que o Senhor lhes outorgou,
como acima se disse, ligeiro gosto de sua divindade, para que a impiedade não
velasse com a ignorância, e por vezes os impulsionou a dizer algumas coisas
pela confissão das quais fossem eles próprios convencidos, mas assim viram o
que viam que de tal visão fossem bem pouco dirigidos em relação à verdade,
muito menos a ela realmente chegassem. Exatamente como o caminhante que está no
meio do campo: vê por um momento em ampla e vasta extensão a coruscação do
relâmpago noturno, mas, antes que possa mover o pé, desvanecida de repente a
visão, é de novo tragado pela escuridão da noite, de sorte que bem longe está
de ser conduzido pelo caminho mercê de tal ajuda. Além disso, essas gotículas
de verdade com que, como que fortuitamente, borrifam seus livros, de quantas e
quão portentosas falsidades têm sido manchadas! Afinal, por certo jamais nem
sequer o cheiro sentiram daquela certeza da divina benevolência para conosco,
sem a qual a mente do homem necessariamente se enche de desmedida confusão.
Portanto, a razão humana nem se aproxima, nem se esforça, nem sequer mira em
direção a esta verdade, de sorte a entender quem seja o Deus verdadeiro, ou o
que ele seja para conosco.
João
Calvino