Os testemunhos que, depois disto,
daqui e dali respigam da Escritura não haverão de causar muita dificuldade até
mesmo aos entendimentos menos aquinhoados, que simplesmente tenham devidamente
se embebido das refutações precedentes. Citam do Gênesis essa afirmação: “Sob
ti estará o desejo, e tu dominarás sobre ele” [Gn 4.7], o que interpretam como
uma referência ao pecado, como se o Senhor houvesse prometido a Caim que, se
quisesse lutar muito em subjugá-lo, a força do pecado não haveria de ser
superior em sua mente. Dizemos, porém, que mais se coaduna com a ordem da
oração quando esta afir mação é tomada em referência a Abel, pois Deus aí tem o
propósito de condenar a iniqüidade da inveja que Caim havia concebido contra o
irmão. Isto Deus o faz por dupla razão: primeira, que em vão Caim meditava um
crime em função do qual excelesse ao irmão junto a Deus, em quem nenhuma honra
há senão a da justiça; segunda, que Caim seria supinamente ingrato pela bênção
que já recebera de Deus, se não pudesse tolerar ao irmão, quando este estava
realmente sujeito à sua autoridade de primogênito. Com efeito, para que não
pareçamos abraçar esta interpretação porque a outra nos é contrária, imaginemos
que, de fato, Deus haja aí falado em relação ao pecado. Se assim é, o Senhor ou
está prometendo, ou está ordenando, o que aí enuncia. Se está ordenando, já
demonstramos que daí não se deduz nenhuma prova de capacidade humana; se está
prometendo, onde jaz o cumprimento da promessa, uma vez que Caim sucumbiu ao
pecado ao qual deveria dominar? Dirão que há tácita condição inclusa à
promessa, como se dissesse que ele haveria de alcançar a vitória, se lutasse.
No entanto, quem aceitaria tais rodeios? Ora, se esse domínio se refere ao
pecado, ninguém nutre dúvida de que a oração seja imperativa, na qual não se
define que possamos; pelo contrário, que devamos, embora acima de nosso poder.
Todavia, não só a própria matéria, mas também a norma da gramática, exigem que
se faça uma comparação de Caim e Abel, porquanto o irmão primogênito não teria
sido posto em segundo plano em relação ao mais jovem, não fora que pelo próprio
crime se fizera inferior.
João
Calvino