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sábado, 21 de julho de 2018

HOMEM NENHUM JAMAIS PÔDE CUMPRIR A LEI INTEGRALMENTE


Entretanto, o que dissemos ser impossível à observância da lei, isto se deve, em poucas palavras, a um tempo, explicar e confirmar. Ora, costuma ela comumente parecer opinião de todo absurda. Tanto assim que Jerônimo não hesitou em lançarlhe anátema. Que tenha parecido a Jerônimo, não me demoro a considerar; indaguemos o que há de verdadeiro nisso. Não tecerei aqui longos rodeios acerca das várias espécies de possibilidade. Chamo “impossível” o que jamais nem mesmo existiu, e pela ordenação e decreto de Deus é impedido de vir à existência no futuro. Se da mais remota reminiscência perquirirmos, afirmo que nenhum dos santos jamais existiu que, revestido do corpo de morte [Rm 7.24], a este grau de amor haja atingido, que amasse a Deus de todo o coração, de todo o entendimento, de toda a alma, de toda a força; por outro lado, ninguém que não tenha mourejado na concupiscência. Quem o contradiga? Vejo, com efeito, que sorte de santos nos imagine a estulta superstição, isto é, santos a cuja pureza mal correspondem os anjos dos céus, mas o repelem tanto a Escritura quanto o ditame da experiência. Digo, ademais, ninguém para o futuro há de vir a existir, que possa chegar à meta da verdadeira perfeição, a não ser desvencilhado do fardo do corpo. Nesta matéria abundam, em primeiro plano, manifestos testemunhos da Escritura. “Não há homem justo sobre a terra, que não peque”, dizia Salomão [1Rs 8.46; Ec 7.20]. E Davi: “Nenhum vivente será justificado à tua vista” [Sl 143.2]. Jó afirma o mesmo em muitos lugares. Mais claramente que todos, Paulo, que “a carne cobiça contra o espírito e o espírito contra a carne” [G1 5.17]. Nem de outra razão prova sujeitos à maldição todos os que estão debaixo da lei, senão porque está escrito: “Malditos todos os que não permanecerem em todos os seu mandamentos” [Dt 27.26; Gl 3.10], insinuando, sem dúvida, de fato assumindo como confesso, que ninguém pode assim permanecer. Tudo, porém, quanto foi predito nas Escrituras, isto ensina ele haver de ser por perpétuo e até mesmo como necessário.
Com sutileza desse porte os pelagianos molestavam a Agostinho, a saber, fazerse injúria a Deus, se ele ordena mais do que, mercê de sua graça, possam os fiéis executar.145 Aquele, para que lhes evadisse à invectiva, confessava poder o Senhor, certamente, se o quisesse, transportar o homem mortal à pureza angélica. Entretanto, nem jamais fizera, nem haveria de fazer o que declarara em termos diferentes nas Escrituras. Nem nego isto. Mas acrescento, no entanto, que se contrapõe inapropriadamente o poder de Deus à sua verdade. Portanto, se alguém diz que não pode acontecer o que as Escrituras declaram não haver de ocorrer, tal postulação não está sujeita a cavilações. Se, porém, se discute acerca do termo poder, o Senhor responde aos discípulos que lhe perguntavam: “Quem pode ser salvo?”, que entre os homens isto é certamente impossível; em Deus, entretanto, são possíveis todas as coisas [Mt 19.25, 26]. Também, com validíssima razão, isto contende Agostinho: jamais nesta carne rendemos nós o legítimo amor que devemos a Deus. “O amor”, diz ele, “assim segue ao conhecimento, que ninguém pode amar perfeitamente a Deus antes que a bondade lhe seja plenamente conhecida. Nós, enquanto peregrinamos no mundo, vemos por um espelho e em enigma [1Co 13.12]. Segue-se, portanto, que nosso amor é imperfeito.” Esteja, pois, fora de controvérsia, se visualizamos a falta de poder de nossa natureza, que nesta carne é impossível o cumprimento da lei, como, aliás, se mostra, além disso, de Paulo em outro lugar [Rm 8.3].

João Calvino