Entretanto, o que dissemos ser
impossível à observância da lei, isto se deve, em poucas palavras, a um tempo,
explicar e confirmar. Ora, costuma ela comumente parecer opinião de todo
absurda. Tanto assim que Jerônimo não hesitou em lançarlhe anátema. Que tenha
parecido a Jerônimo, não me demoro a considerar; indaguemos o que há de
verdadeiro nisso. Não tecerei aqui longos rodeios acerca das várias espécies de
possibilidade. Chamo “impossível” o que jamais nem mesmo existiu, e pela
ordenação e decreto de Deus é impedido de vir à existência no futuro. Se da
mais remota reminiscência perquirirmos, afirmo que nenhum dos santos jamais
existiu que, revestido do corpo de morte [Rm 7.24], a este grau de amor haja
atingido, que amasse a Deus de todo o coração, de todo o entendimento, de toda
a alma, de toda a força; por outro lado, ninguém que não tenha mourejado na
concupiscência. Quem o contradiga? Vejo, com efeito, que sorte de santos nos
imagine a estulta superstição, isto é, santos a cuja pureza mal correspondem os
anjos dos céus, mas o repelem tanto a Escritura quanto o ditame da experiência.
Digo, ademais, ninguém para o futuro há de vir a existir, que possa chegar à
meta da verdadeira perfeição, a não ser desvencilhado do fardo do corpo. Nesta
matéria abundam, em primeiro plano, manifestos testemunhos da Escritura. “Não
há homem justo sobre a terra, que não peque”, dizia Salomão [1Rs 8.46; Ec
7.20]. E Davi: “Nenhum vivente será justificado à tua vista” [Sl 143.2]. Jó
afirma o mesmo em muitos lugares. Mais claramente que todos, Paulo, que “a
carne cobiça contra o espírito e o espírito contra a carne” [G1 5.17]. Nem de
outra razão prova sujeitos à maldição todos os que estão debaixo da lei, senão
porque está escrito: “Malditos todos os que não permanecerem em todos os seu
mandamentos” [Dt 27.26; Gl 3.10], insinuando, sem dúvida, de fato assumindo
como confesso, que ninguém pode assim permanecer. Tudo, porém, quanto foi
predito nas Escrituras, isto ensina ele haver de ser por perpétuo e até mesmo
como necessário.
Com sutileza desse porte os pelagianos
molestavam a Agostinho, a saber, fazerse injúria a Deus, se ele ordena mais do
que, mercê de sua graça, possam os fiéis executar.145 Aquele, para que lhes
evadisse à invectiva, confessava poder o Senhor, certamente, se o quisesse,
transportar o homem mortal à pureza angélica. Entretanto, nem jamais fizera,
nem haveria de fazer o que declarara em termos diferentes nas Escrituras. Nem
nego isto. Mas acrescento, no entanto, que se contrapõe inapropriadamente o
poder de Deus à sua verdade. Portanto, se alguém diz que não pode acontecer o
que as Escrituras declaram não haver de ocorrer, tal postulação não está
sujeita a cavilações. Se, porém, se discute acerca do termo poder, o Senhor
responde aos discípulos que lhe perguntavam: “Quem pode ser salvo?”, que entre
os homens isto é certamente impossível; em Deus, entretanto, são possíveis
todas as coisas [Mt 19.25, 26]. Também, com validíssima razão, isto contende
Agostinho: jamais nesta carne rendemos nós o legítimo amor que devemos a Deus.
“O amor”, diz ele, “assim segue ao conhecimento, que ninguém pode amar
perfeitamente a Deus antes que a bondade lhe seja plenamente conhecida. Nós,
enquanto peregrinamos no mundo, vemos por um espelho e em enigma [1Co 13.12].
Segue-se, portanto, que nosso amor é imperfeito.” Esteja, pois, fora de
controvérsia, se visualizamos a falta de poder de nossa natureza, que nesta
carne é impossível o cumprimento da lei, como, aliás, se mostra, além disso, de
Paulo em outro lugar [Rm 8.3].
João
Calvino