Verifiquemos, em primeiro lugar, se
vingança como essa não se coaduna com a justiça divina. Se a natureza inteira
de homens a quem o Senhor não faz dignos da comunicação de sua graça é
condenável, a esses sabemos estar preparada a perdição, contudo perecem por sua
própria iniqüidade, não por ódio iníquo de Deus. Nem lhes é deixada qualquer
desculpa por que à salvação não são ajudados pela graça de Deus a exemplo de
outros. Portanto, uma vez que esta punição é aplicada aos ímpios e depravados
em vista de suas abominações, assim que suas casas sejam privadas da graça de
Deus por muitas gerações, quem haja de intentar incriminação a Deus por causa
desta justíssima represália? Mas, sentencia o Senhor, em contraposição, que a
pena do pecado paterno não haverá de passar-se ao filho [Ez 18.20]. Observa o
de que aqui se trata: os israelitas, como fossem, por longo tempo e
persistentemente, acometidos de muitas calamidades, começaram a reiterar o
provérbio de que seus pais haviam comido uva verde, embotando assim os dentes
dos filhos [Ez 18.2], querendo dizer com isso que, uma vez que seus pais tinham
cometido os pecados cujas punições eles, de outra sorte justos e inculpados,
tinham de sofrer, mais pela implacável ira de Deus do que por sua moderada
severidade. O Profeta, porém, lhes proclama não ser assim, já que são
castigados em virtude de suas próprias transgressões, nem se coaduna com a
justiça de Deus que um filho justo sofra penalidade em função da maldade de um
pai depravado, o que nem se contém no presente dispositivo do mandamento em
consideração. Ora, se a visitação acerca da qual aqui se discute se consuma
quando o Senhor detrai da família dos ímpios a graça, a luz de sua verdade e os
demais recursos que assistem à salvação, nisto mesmo, que dele cegados e
abandonados seguem os filhos nas pegadas dos pais, estão a sofrer as maldições
divinas em virtude dos delitos paternos. Que, porém, são sujeitos não só às
misérias temporais, mas ainda, por fim, à perdição eterna, são por isso punidos pelo justo juízo de
Deus, não em razão de pecados alheios, mas em conseqüência da iniqüidade
pessoal.
João
Calvino