Aqui não julgo ser impróprio inserir
os Dez Mandamentos da lei, com uma breve exposição deles. Porquanto, também
daqui melhor se evidenciará o que tenho frisado, a saber, o fato de até agora
vigorar o culto que Deus uma vez prescreveu. E assim ficará confirmado o
segundo ponto que já mensionamos: que os judeus não só dela aprenderam qual era
a verdadeira natureza da piedade, mas ainda, ante o horror do juízo, vendo que
não tinham força suficiente para cumprir a lei, se viram impulsionados, como
que a contra-gosto, ao Mediador. Agora, ao expor a síntese desses elementos que
se requerem no verdadeiro conhecimento de Deus, ensinamos que, em razão de sua
magnitude, não pode ele ser de nós concebido sem que imediatamente nos vemos
diante de sua majestade, a qual nos impele à adoração. Na parte referente ao
conhecimento de nós mesmos, estabelecemos este ponto capital: que, vazios da
presunção de virtude própria e despidos da confiança de justiça pessoal, pelo
contrário quebrantados e esmagados pela consciência de nossa indigência,
aprendamos a genuína humildade e reconhecimento de nossa insuficiência. A ambos
estes pontos o Senhor atinge em sua lei, onde, em primeiro lugar, vindicado
para si o legítimo poder de mandar, nos chama à reverência de sua divina
majestade e prescreve em que esteja ela situada e de que é ela constituída. Em
segundo lugar, promulgada a regra de sua justiça, a cuja retidão nossa natureza,
por ser depravada e deformada, perpetuamente se opõe, e abaixo de cuja
perfeição a capacidade nossa, uma vez que é fraca e debilitada para o bem, jaz
a longa distância, argúi-nos tanto de insuficiência de poder quanto de carência
de justiça. Ora, tudo quanto se deve aprender das duas Tábuas, de certo modo
no-los dita e ensina aquela lei interior que anteriormente se disse estar
inscrita e como que gravada no coração de todos. Pois nossa consciência não nos
deixa dormir um sono perpétuo, destituído de sensibilidade, sem que nos seja
testemunha e monitora interior daquilo que devemos a Deus, sem que nos
anteponha a diferença do bem e do mal, e assim nos acuse quando nos afastamos
de nosso dever.
Entretanto, já que o homem está
envolto na escuridão dos erros, mediante essa lei natural ele apenas de leve
prova que culto há de ser aceitável a Deus. Na verdade, se afasta de sua
correta compreensão por uma longa distância. Além disso, está a tal ponto
intumescido de arrogância e ambição, e cegado de amor próprio, que nem ainda é
capaz de contemplar-se e como que descer dentro de si mesmo, para que aprenda a
humilhar-se e reconhecer a própria indignidade e confessar sua miséria. Por
isso, porquanto era necessário, tanto a nosso embotamento quanto a nossa
contumácia, proveu-nos o Senhor a lei escrita para que não só atestasse com
certeza maior o que era demasiadamente obscuro na lei natural, mas também,
sacudido o torpor, a mente e a memória nos ferissem com mais intensa vividez.
João
Calvino