Em terceiro lugar, deve considerar-se o que
significa a divisão da lei divina em duas tábuas, das quais todos os de
espírito saudável proclamarão ter sido feita várias vezes solene menção, não
sem causa, nem temerariamente. E à mão nos está a razão por que não nos deixa
permanecer incertos acerca desta matéria. Pois Deus assim dividiu sua lei em
duas partes, nas quais se contém toda a justiça, que tenha aplicado a primeira
aos deveres da religião, que dizem respeito peculiarmente ao culto de sua
divina majestade; a outra, aos deveres do amor, que têm a ver com os homens.
Seguramente, o primeiro fundamento da justiça é o culto de Deus, derruído o
qual, esboroam-se e se dissipam todas as demais partes da justiça, como se
porções de um edifício fossem rompidas e desmoronadas. Ora, de que espécie de
justiça dirás ser que não acometas aos homens com furtos e pilhagens, se, mercê
de ímpio sacrilégio, ao mesmo tempo, de sua glória despojas a majestade de
Deus; que não conspurcas teu corpo com fornicação, se com tuas blasfêmias
profanas o sacrossanto nome de Deus; que não assassinas a um homem, se te
empenhas em matar e extinguir a lembrança de Deus?Em vão, portanto, apregoa-se
retidão sem religião. E com fascínio em nada maior do que se, cortada a cabeça,
a um corpo mutilado se exiba para exemplar de beleza. A religião não só lhe é a
parte principal, mas até mesmo a própria alma da retidão, mercê da qual toda
ela tem alento e possui vigor, pois, fora do temor de Deus, nem conservam os
homens entre si a eqüidade e a afeição. Conseqüentemente, chamamos ao culto de
Deus o princípio e fundamento da justiça, porquanto, uma vez suprimido, tudo
quanto de eqüidade, continência, temperança, que entre si os homens exercem, é
inútil e frívolo aos olhos de Deus. Dizemo-lo, ademais, ser a fonte e o
espírito da retidão, porquanto, se honram a Deus como o Juiz do reto e do
iníquo, dele aprendem os homens a viver entre si moderadamente e sem malefício.
Daí, na primeira tábua Deus nos instrui em relação à piedade e aos deveres
próprios da religião, mediante os quais sua majestade deve ser cultuada; na
segunda tábua prescreve como, em razão do temor de seu nome, nos devamos
conduzir na sociedade dos homens. Por essa razão, nosso Senhor, como o
registram os evangelistas [Mt 22.37, 39; Mc 12. 30, 31; Lc 10.27], coligiu toda
a lei, sumariamente, em dois itens: que amemos a Deus de todo o coração, de
toda a alma, de todas as forças, e que amemos ao próximo como a nós mesmos. Vês
que das duas partes em que encerra toda a lei, uma ele a dirige para com Deus,
a outra ele destina aos homens.
João
Calvino