Insistem, ademais, que em vão se fazem
exortações, que supérfluo é o uso de admoestações, que ridículas são as
repreensões, a não ser que no pecador esteja o poder de obedecer. Como outrora
objeções como estas se antepusessem a Agostinho, ele se viu obrigado a escrever
o tratado Da Correção e da Graça, onde, ainda que fartamente refute a essas
cavilações, contudo chama a atenção dos oponentes para este ponto capital: “Ó
homem, no preceito saibas o que deves fazer; na correção saibas que por tua
falta não o tens; na oração saibas donde hajas de receber o que queres ter.”
Quase do mesmo teor é o livro Do Espírito e da Letra, em que ensina que Deus
mede os preceitos de sua lei não conforme as forças humanas, mas, em verdade,
onde ordenou o que é reto, graciosamente outorgou a seus eleitos a capacidade
de cumpri-lo. Com efeito, esta não é matéria de longa discussão. Acima de tudo,
não estamos sós nesta causa; pelo contrário, Cristo e todos os apóstolos estão
conosco. Vejam esses como hajam de levar a melhor na luta que intentam com
antagonistas como tais. Cristo, que declara que sem ele nada podemos fazer [Jo 15.5],
porventura com isso reprova e pune menos os que, à parte dele próprio, faziam o
mal? Porventura com isso exorta menos a que cada um se devote às boas obras?
Quão severamente Paulo investe contra os coríntios [1Co 3.3] em razão de sua
negligência do amor fraternal! [1Co 16.14]. Contudo, por fim suplica que esse
amor seja, pelo Senhor, dado aos mesmos coríntios. Afirma, na Epístola aos
Romanos [9.16], que não é do que quer, nem do que corre, mas de Deus que se
compadece; entretanto, depois disso não deixa de admoestar, de exortar e de
repreender. Portanto, por que ao Senhor não importunam para que assim não
labore em vão exigindo dos homens aquilo que só ele pode dar e castigando
aquilo que se comete em virtude da ausência de sua graça? Por que não admoestam
a Paulo a que poupe àqueles em cuja mão, a não ser que a misericórdia de Deus
lhes vá adiante, que agora os tem desassistido, não está o poder de querer ou
de correr? Como se, de fato, não se
patenteie no próprio Senhor a mais excelente razão de sua doutrina, que
prontamente se oferece aos que mais piedosamente a buscam! Com efeito, Paulo
indica quanto de si contribuem o ensino, a exortação e a repreensão para mudar
a mente, quando escreve: “Nem o que planta é algo, nem o que rega, mas só o
Senhor é que dá o crescimento e opera eficazmente” [1Co 3.7]. Assim, vemos
sancionar Moisés, com toda severidade, os preceitos da lei [Dt 30.19], e os
profetas acremente instarem com os transgressores e a ameaçá-los. Vemos,
entretanto, como professam ter entendimento, então finalmente os homens, quando
se lhes dá coração para que entendam [Is 5.24; 24.5; Jr 9.13-16; 16.11-13;
44.10-14; Dn 9.11; Am 2.4], são a própria obra de Deus, a circuncidar os
corações [Dt 10.16; Jr 4.4] e a dar corações de carne em lugar de corações de
pedra [Ez 11.19], a gravar sua lei nas entranhas [Jr 31.33], afinal, a renovar
as almas [Ez 36.26] e a fazer com que a doutrina lhes seja eficaz.
João
Calvino