Quando dizemos ser esse o sentido da
lei, não estamos a impor uma interpretação nova, oriunda de nós mesmos; pelo
contrário, estamos seguindo a Cristo, o melhor intérprete da lei. Como, pois,
os fariseus imbuíram o povo de pervertida opinião, isto é, que cumpria
cabalmente a lei quem, por ato externo, nada tivesse praticado contra a lei,
Cristo condena este perigosíssimo erro e declara que é adultério a mera
olhadela impudica para a mulher [Mt 5.28], e testifica que são homicidas todos
quantos odeiam a um irmão, pois se fazem passíveis ao juízo aqueles que
porventura sequer tenham concebido ira no íntimo; passiveis ao tribunal aqueles
que, murmurando ou vociferando, tenham dado alguma demonstração de espírito
ofendido; passíveis à Gehena de fogo aqueles que, com impropérios e invectiva,
tenham irrompido em ira franca [Mt 5.22]. Aqueles que não perceberam estas
coisas imaginaram a Cristo como outro Moisés, o portador da lei do evangelho,
lei esta que cumpria a deficiência da lei mosaica. Donde esse popularizado
axioma acerca da perfeição da lei do evangelho: que ela supera, por ampla
distância, a antiga lei, o que, de muitos modos, é assaz pemicioso. Ora, do
próprio Moisés, quando mais adiante coligirmos a suma de seus preceitos,
evidenciar-se-á de quão indigna afronta esta maneira de ver tisna a lei divina.
Insinua ela que a santidade dos patriarcas, na verdade, não se distanciou muito
da hipocrisia e nos afasta daquela única e perpétua norma de justiça. Mui
fácil, porém, é a refutação deste erro, porquanto pensaram que Cristo
acrescenta à lei, quando apenas a restaura à sua integridade, enquanto,
obscurecida pelas deturpações dos fariseus e maculada por seu fermento, a
liberta e purifica.
João
Calvino