Agora se torna fácil entender o que se
deva aprender da lei, isto é, que Deus, uma vez que é nosso Criador, tem
portanto por direito, em relação a nós como Pai e Senhor, e por esta razão de
nós se lhe devem glória, reverência, amor, temor. Ademais, também não nos é
direito seguirmos para onde quer que o impulso da mente porventura nos
impulsione; ao contrário, pendentes de seu arbítrio, devemos firmarnos somente
naquilo que lhe seja do agrado. Então, que lhe são aprazíveis a justiça e a
retidão, porém abominável a iniqüidade, e por isso, a não ser que por ímpia
ingratidão nos queiramos afastar de nosso Criador, necessariamente deve ser por
nós cultuada a justiça em toda a vida. Ora, se então, afinal, lhe exibirmos a
reverência que de nós se demanda, quando preferirmos sua vontade à nossa, segue-se
que outro não lhe é o culto genuíno, senão a observância da justiça, da
santidade, da pureza. Nem procede pretextar a desculpa de que nos falta a
capacidade, e como devedores arruinados não temos condições de pagar. Pois não
é defensável que meçamos a glória de Deus pela medida de nossa capacidade,
porquanto, seja o que de fato somos, Aquele permanece sempre semelhante a si
mesmo, amigo da justiça, imune à iniqüidade. Tudo quanto de nós exija, visto
que ele não pode exigir senão o que é reto, a necessidade permanece de
obedecermos por obrigação de natureza. O fato, porém, de não o podermos, isto
nos é devido à imperfeição. Ora, se somos mantidos amarrados pela própria
concupiscência, em que o pecado reina [Rm 6.12], de sorte que não somos livres
para a obediência de nosso Pai, não há por que pleiteemos por defesa essa
necessidade, cujo mal não só está dentro de nós, como também deve sernos
imputado.
João
Calvino