Por outro lado,
apresenta-se a promessa de que a misericórdia de Deus haverá de ser propagada a
mil gerações, promessa que ocorre nas Escrituras, aliás com freqüência, e é
inserida no solene pacto da Igreja: “Eu serei o teu Deus, e de tua semente após
ti” [Gn 17.7]. Contemplando isto, Salomão escreve que seriam bemaventurados os
filhos dos justos após a morte destes [Pv 20.7], não apenas em razão de sua
santa educação, que também ela própria não tem, na verdade, reduzida
importância, mas ainda, em decorrência desta bênção prometida no pacto, para
que a graça de Deus resida eternamente nas famílias dos piedosos. Daqui há
conforto singular para os fiéis, e terror ingente para os ímpios, porque, se
também após a morte, a lembrança tanto da justiça quanto da iniqüidade vale
tanto diante de Deus, que a maldição deste e a bênção daquele se transmitem à
posteridade, muito mais repousarão sobre as próprias cabeças dos que as têm
praticado. No entanto, nada impede que a descendência dos ímpios por vezes se
volte à prática do bem, a descendência dos fiéis degenere, pois aqui não quis o
Legislador fixar uma regra perpétua que anulasse sua eleição. Ora, para conforto
do justo e terror do pecador, é suficiente que ela não seja uma declaração vã
ou ineficaz, embora nem sempre tenha lugar. Pois, da mesma forma que as penas
temporais que são infligidas a uns poucos ímpios são testemunhas da ira divina
contra os pecados e do juízo um dia a sobrevir a todos os pecadores, embora
muitos passem impunemente até o fim da vida, assim também, quando o Senhor dá
um exemplo desta bênção, de sorte que, por causa do pai, contemple o filho com
sua misericórdia e benignidade, está a exibir prova de seu constante e perpétuo
favor para com seus adoradores. Quando, uma vez, no filho persegue a iniqüidade
do pai, Deus está a ensinar que espécie de juízo se reserva a todos os réprobos
por suas próprias transgressões, certeza que aqui contemplou acima de tudo.
Ademais, recomenda-nos, de passagem, a grandeza de sua misericórdia, que
estende por mil gerações, quando somente quatro gerações reservara à punição.
João Calvino