Outra é a situação das cerimônias, as
quais foram abolidas não no efeito, mas somente no uso. Mas que, por sua vinda,
Cristo lhes pôs fim, nada lhes subtraindo à santidade; ao contrário, ainda mais
a recomenda e enaltece. Ora, assim como ao povo antigo teriam as cerimônias
oferecido um espetáculo vazio, salvo se ne1as fosse revelado o poder da morte e
ressurreição de Cristo, assim também, se elas não cessassem, hoje não seria
possível discernir a que propósito foram instituídas. Conseqüentemente, para
que a observância prove serem elas não apenas supérfluas, mas até nocivas,
Paulo ensina que foram sombras cujo corpo se nos depara em Cristo [Cl 2.17].
Vemos, pois, que em seu cancelamento refulge melhor a verdade do que se
continuassem tipificando a Cristo, embora de longe e como que por trás de um
véu, o qual já apareceu concretamente. Por isso também, na morte de Cristo, o
véu do templo se rasgou em duas partes [Mt 27.51], porque já era vinda à luz a
imagem viva e expressa dos bens celestes, que foi iniciada apenas em
delineamentos obscuros, como fala o autor da Epístola aos Hebreus [10.1]. A
isto se aplica a declaração de Cristo: “A Lei e os Profetas vigoraram até João;
a partir de então começou a proclamar-se o reino de Deus” [Lc 16.16]; não que
os santos patriarcas fossem privados da pregação que contém a esperança da
salvação e da vida eterna, mas, ao contrário, que apenas vislumbraram de longe
e sob sombreamentos o que hoje contemplamos em plena luz. Por que, porém, se
fez necessário à Igreja de Deus que esses rudimentos subissem mais alto,
explica-o João Batista: “Porque a lei foi dada por Moisés, a graça, entretanto,
e a verdade foram trazidas por intermédio de Jesus” [Jo 1.17]. Pois, se bem que
nos sacrifícios antigos foi, na verdade, prometida a expiação, e a Arca da
Aliança foi seguro penhor do paterno favor de Deus, tudo isso teria sido umbroso,
salvo se fundado na graça de Cristo, em quem se acha sólida e eterna
estabilidade. Contudo, que isto fique estabelecido: ainda que os ritos legais
tenham deixado de ser observados, entretanto, por seu próprio fim, melhor se
conhece quão grande lhes foi a utilidade antes da vinda de Cristo que, ao
abolir seu uso, por sua morte, lhes selou a força e o efeito.
João
Calvino