Ora, a que fim servem as exortações? É
certo que, se pelos ímpios são desdenhadas, movidos por coração obstinado, se
lhes tornarão em testemunho quando acontecer de virem diante do tribunal do
Senhor; além de quê, já agora mesmo lhes fustigam e ferem a consciência,
porquanto, por mais que as escarneça o mais insolente de todos, não obstante
não as pode condenar. O que, porém, haverá de fazer um mísero homenzinho,
dirás, quando lhe é negada a maleabilidade de coração, que era necessária para
a obediência? Pois bem, que subterfúgio invoca, visto que não pode imputar a
dureza do coração a ninguém, senão a si próprio? Conseqüentemente, os ímpios,
preparados para de bom grado ridicularizá-las, se houver ocasião, são
encolhidos por seu poder, queiram ou não. Sua principal utilidade, porém, deve
considerar-se em relação aos fiéis, em quem, uma vez que o Senhor tudo faz
mediante seu Espírito, assim não negligencia o instrumento de sua Palavra e
neles dele faz uso não sem eficiência. Portanto, firme se eleve o que é
verdadeiro, a saber: toda a força dos piedosos repousa na graça de Deus,
segundo esse dito do Profeta: “E lhes darei um coração novo para que nele
andem” [Ez 11.19, 20]. Objetarás, no entanto: “Por que os piedosos são agora
admoestados de seu dever e não antes deixados à direção do Espírito?” “Por que
são espicaçados de exortações, quando não podem ser açodados mais do que os
impele a impulsão do Espírito?” “Por que são castigados quando são desviados do
caminho, uma vez que têm caído em virtude da necessária fraqueza da carne?” Ó
homem, quem és tu que imponhas lei a Deus? Se para receber esta própria graça
mercê da qual se deve obedecer à exortação, ele nos quer preparar mediante
exortação, que tens tu que murmures ou improperes em referência a esta
dispensa- ção? Se em relação aos piedosos de nenhum outro proveito fossem
exortações e repreensões, senão para que os convencessem de pecado, por isso
mesmo sua imputação não deveria ser de todo inútil. Ora, operando o Espírito
interiormente, elas valem muitíssimo para inflamar o desejo do bem, para
sacudir a indiferença, para alijar a volúpia da iniqüidade e seu envenenado
dulçor; até mesmo em contrário, para gerar-lhes ódio e tédio, quem ousa
acusá-las de supérfluas? Se alguém deseja resposta mais clara, assim a terá:
Deus opera em seus eleitos de duas maneiras: interiormente, através do
Espírito; exteriormente, mediante a Palavra. Pelo Espírito, iluminando-lhes a
mente e plasmando o coração ao amor e ao cultivo da retidão, os faz novas
criaturas. Pela Palavra, despertando-os para que desejem, busquem, alcancem
essa mesma renovação. Em ambos – o Espírito e a Palavra – eleevidencia a
operação de sua mão, segundo a maneira de sua dispensação. A mesma Palavra,
quando a dirige aos réprobos, se bem que não para sua correção, contudo a outro
uso a faz valer: para que não só, no presente, sejam premidos pelo testemunho
da consciência, mas ainda mais inescusáveis se tornem no dia do Juízo. Assim
Cristo, embora declare que ninguém vem a ele, a não ser aquele a quem o Pai
trouxer, e que os eleitos vêm depois que tiverem ouvido e aprendido do Pai [Jo
6.44, 45], contudo ele próprio não negligencia o ofício docente; pelo
contrário, empenhadamente convida, com sua própria voz, àqueles que, por
necessidade, devam ser interiormente ensinados pelo Espírito Santo, para que
façam algum progresso. Paulo assinala que o ensino ministrado aos réprobos não
é ocioso, visto que lhes é odor de morte para morte [2Co 2.16], embora para
Deus seja suave fragrância [2Co 2.15].
João
Calvino