Resta a considerar-se aquele terceiro
elemento quanto a conhecer-se a regra de dirigir a vida probamente, a que
chamamos, com razão, de conhecimento das obras da justiça, onde a mente humana
parece ser um tanto mais aguda que nas coisas superiores, pois o Apóstolo
atesta [Rm 2.14, 15] que os gentios, que não têm a lei, quando praticam as
obras da lei, são por lei para si e mostram a obra da lei escrita em seu
coração, dando-lhes testemunho a própria consciência e entre eles os
pensamentos acusando-os ou escusando-os diante do tribunal de Deus. Se os
gentios têm a justiça da lei da natureza gravada na mente, por certo que não
diremos que são inteiramente cegos na maneira de conduzir a vida. E nada é mais
generalizado que ser o homem suficientemente assistido, em relação à reta norma
da vida, pela lei natural de que o Apóstolo aqui fala. Consideremos, porém, a
que propósito este conhecimento da lei foi infundido aos homens. Então,
evidenciar-se-á prontamente até onde os conduzirá à meta da razão e da verdade.
Se alguém observa sua seqüência, isso se faz claro também à luz das palavras de
Paulo. Pouco antes ele dissera que aqueles que sob a lei pecaram, segundo a lei
são julgados; os que sem a lei pecaram, sem a lei perecem. Visto que isso
poderia parecer absurdo, que os gentios pereçam sem qualquer julgamento pré vio,
ele acrescenta imediatamente que sua consciência lhes está no lugar da lei, e
por isso lhes é suficiente para justa condenação. Portanto, a finalidade da lei
natural é tornar o homem inescusável. E poderíamos defini-la adequadamente
dizendo que é um sentimento da consciência mediante o qual discerne entre o bem
e o mal o suficiente para que os homens não prextestem ignorância, sendo
convencidos por seu próprio testemunho.49 A indulgência do homem para consigo
mesmo é que, ao perpetrar o mal, sempre e de bom grado aparta a mente do senso
de pecado, até onde permissível. Razão pela qual Platão, no Protágoras, parece
ter sido impelido a pensar que não se peca a não ser por ignorância. Isto, sem
dúvida, ele o teria dito com propriedade, se a hipocrisia humana tanto
avultasse em encobrir os vícios que a mente não se fizesse cônscia de sua
culpabilidade diante de Deus. Como, porém, esquivando-se o pecador ao
julgamento do bem e do mal em si impresso, é em relação a ele constantemente
recambiado, nem se lhe permite sequer assim cerrar as pálpebras que não seja
obrigado, queira ou não, a abrir às vezes os olhos, diz-se falsamente que ele
peca meramente por ignorância.
João
Calvino