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domingo, 15 de julho de 2018

À GRAÇA ESPECIAL DE DEUS SE DEVEM ATÉ MESMO AS AÇÕES DIGNAS QUE O HOMEM NATURAL PRATICA


Contudo, a dificuldade ainda não foi resolvida. Pois, ou importa que façamos Camilo igual a Catilina, ou teremos em Camilo um exemplo de que, se for cultivada com diligência, a natureza não é inteiramente desprovida de bondade. Eu, realmente, reconheço os brilhantes dotes que houve em Camilo, como reconheço não só terem sido dons de Deus; mais ainda, se em si estimados, parecem, de direito, dignos de encômio. Como, porém, serão provas de probidade natural ne1e? Para demonstrar isso é preciso voltar a refletir sobre o coração e argumentar assim:66 Se um homem natural exceleu em tal integridade de costumes, com isso sua natureza não destrói a capacidade para o cultivo da virtude. E então? Se sua mente é depravada e tortuosa, que tenha antes seguido qualquer outra coisa, e não a retidão? E não há dúvida de que tal foi sua mente, se admites ter sido ele um homem natural. Que poder para o bem, me perguntarás, neste aspecto, à natureza humana, se na mais elevada aparência de integridade sempre se depreende ser ela impelida à corrupção? Portanto, como não haverás de recomendar por sua virtude a um homem cujos vícios se impõem sob a semelhança de virtude, assim não atribuas à vontade humana a capacidade de buscar o que é reto, por quanto tempo está ela encravada em sua perversidade. Contudo, eis a solução mais certa e mais fácil para esta questão: esses não são dotes comuns da natureza, mas graças especiais de Deus, que ele dispensa, variadamente e em medida certa, a homens de outra sorte profanos. Por cuja razão, em linguagem comum, não nos arreceamos de dizer ser este bem-nascido, ser aquele de natureza depravada. Entretanto, nem deixamos de incluir a um e ao outro sob a condição universal de depravação humana, mas apontamos que, por graça especial, o Senhor tem conferido a um, da qual não dignou prover ao outro. Querendo colocar Saul à frente do reino, Deus formou como que um novo homem [1Sm 10.6]; e esta é a razão por que Platão, aludindo à fábula homérica, diz que os filhos dos reis são nascidos assinalados de certa marca singular, já que Deus, querendo prover ao interesse do gênero humano, freqüentemente dota de natureza heróica aos que destina ao mando, e desta oficina tem provindo tudo quanto as histórias celebram dos grandes chefes. O mesmo se deve pensar também dos que não são homens públicos. Mas, porque, por mais eminente que alguém seja, sempre o impeliu sua ambição, mancha de que todas as virtudes são conspurcadas, perdendo assim toda valia diante de Deus, deve-se considerar como nada tudo quanto se mostra digno de louvor nos homens profanos. Acrescenta que, onde nenhum empenho há de promover a glória de Deus, empenho de que são desprovidos todos os que Deus não regenerou por seu Espírito, está ausente a parte principal da retitude. Na verdade, não é em vão o que lemos em Isaías [11.2]: que sobre Cristo repousaria o espírito do temor de Deus; pelo que somos ensinados que todos quantos estão alienados de Cristo carecem desse mesmo temor de Deus, que é o princípio da sabedoria [Sl 111.10]. Quanto às virtudes que nos enganam com sua vã aparência, sem dúvida que terão seu louvor no foro social e na estima comum dos homens; mas, de nenhuma valia serão para granjear a justiça ante o tribunal celeste.

João Calvino