Surge-nos de novo quase a mesma
questão que foi anteriormente resolvida. Ora, em todos os tempos, alguns têm
existido que, guiados pela natureza, têm-se inclina do para a virtude por toda
a vida. Nem levo em conta se nos costumes se possam notar neles muitos
deslizes, uma vez que, pelo próprio empenho para com a honestidade, têm dado
prova de que na natureza algo de pureza lhes subsistia. De que valor se
revestem diante de Deus virtudes desta espécie, embora tenhamos de discuti-lo
mais plenamente onde se haverá de tratar dos méritos das obras; contudo, até
onde se faz necessário à elucidação do presente argumento, também neste lugar
se nos impõe falar do assunto. Portanto, estes exemplos nos parecem avisar,
para que não pensemos ser de todo corrompida a natureza do homem, visto que, de
sua inclinação, alguns não só excederam em sublimadas ações, mas até se
conduziram com a máxima dignidade por todo o curso da vida. Contudo, aqui nos
deve ocorrer que, por entre esta corrupção de nossa natureza, algum lugar há
para a graça de Deus, não aquela que a expurgue, mas aquela que a coíba interiormente.
Ora, se o Senhor permitisse à mente de cada um esbaldar-se de rédeas soltas em
todos os desejos, sem dúvida ninguém haveria que, de fato, não propiciasse
confirmação de que, mui verdadeiramente, em si concorreriam todas aquelas
coisas más pelas quais Paulo condena toda a natureza [Rm 3.12]. E então?
Porventura te eximes ao número desses cujos pés são velozes para derramar
sangue [Rm 3.15], as mãos aviltadas em rapinas e assassinatos, a garganta
semelhante a sepulcros abertos, a língua enganosa, os lábios pejados de veneno
[Rm 3.13], as obras inúteis, iníquas, pútridas, letais, cuja mente é sem Deus,
cujas entranhas são depravações, cujos olhos estão voltados para as insídias, o
ânimo alçadopara ultrajar; em suma, todas as partes engrenadas para infindas
impiedades? Se, como o declara o Apóstolo inqualificadamente, cada alma é
sujeita a todas as abominações desta espécie, seguramente vemos o que haveria
de ser, se o Senhor deixasse que a licenciosidade humana vagasse, conforme sua
inclinação. Não há nenhuma fera raivosa que seja impelida tão desbragadamente;
rio nenhum, por mais caudaloso e violento, que o desbordamento seja tão
impetuoso. Em seus eleitos, o Senhor cura estes achaques na maneira que logo
exporemos; nos outros, aplicado um freio, apenas os coíbe, só para que não se
arrojem a extremos, até onde antevê ser conveniente para a preservação da
totalidade das coisas. Daqui, uns são contidos pelo senso de vergonha, outros,
pelo temor das leis, para que não se lancem a muitas espécies de torpezas, se
bem que, em larga medida, não dissimulam sua impureza; outros, porque julguem
ser de vantagem uma forma honesta de viver, a ela, de certa maneira, aspiram;
outros se alteiam acima da condição vulgar para que, mercê de sua própria
importância, contenham os demais na linha da deferência apropriada. E assim,
mediante sua providência, Deus nos refreia a perversidade da natureza para que
não irrompa em ação; entretanto, não a purifica interiormente.
João
Calvino