E, por ignorância, para isto se torce
falsamente esta afirmação do Apóstolo: “Trabalhei mais do que todos estes, não
eu, mas a graça de Deus comigo” [1Co 15.10]. Ora, assim entendem: como parece
que o Apóstolo se gloria com muita arrogância de haver se avantajado aos
demais, se corrige atribuindo a glória à graça de Deus, porém de tal maneira
que se põe como parte com Deus em sua ação. É de admirar que tantos homens,
de outro modo não maus, tenham tropeçado neste argueiro. Ora, o Apóstolo não
está escrevendo que a graça do Senhor havia operado com ele de modo a fazer
dele co-participante do labor, senão que, antes, transfere todo o louvor da
ação somente à graça, mediante esta correção: “todavia não eu”, diz ele, “mas a
graça de Deus que estava presente comigo.” A ambigüidade da expressão, porém,
os enganou, contudo ainda mais a polêmica tradução latina, na qual se perdeu a
força do artigo grego. Pois, se traduzires palavra por palavra, não está
dizendo que a graça foi sua cooperadora, mas que a graça que lhe assistia em
tudo foi operadora. E Agostinho ensina isto não de forma obscura, se bem que
sucintamente, quando fala assim: “A boa vontade do homem precede a muitos dons
de Deus, não, porém, a todos. Ora, a própria boa vontade que os precede, também
ela mesma está entre eles.” Então, vem em seguida a razão: “Porque foi escrito:
sua misericórdia se me antecipou” [Sl 59.10]; e: “sua misericórdia me seguirá”
[Sl 23.6]; antecipou-se ao que não quer, para que queira; segue ao que quer,
para que não queira em vão.90 Com quem está de acordo Bernardo, quando introduz
a Igreja como que a falar: “Ó Deus, atrai-me como por força, para fazer o que
eu quero; arrasta-me, que sou moroso, para que me faças correr.”
João
Calvino