Quem for diligentemente atento em ponderar estas coisas
como é justo, deixará prontamente de levar em consideração as especulações
errôneas que os espíritos levianos
e ávidos por novidade arrogam para si, dizendo que Cristo, ainda que não fosse
necessário tal remédio para redimir o gênero humano, contudo haveria de
tornar-se homem. Confesso, por certo, que, na condição original da criação e no
estado íntegro da natureza, Cristo foi posto acima de anjos e homens como seu
Cabeça, razão por que Paulo o chama “o primogênito de toda a criação” [Cl
1.15]. Quando, porém, a Escritura inteira proclama haver-se ele revestido de
carne a fim de que viesse a ser o Redentor, não passa de tremenda temeridade
imaginar-se outra causa ou outro propósito. A que fim foi Cristo prometido
desde o início sabe-se sobejamente, ou, seja, para que restaurasse o mundo
decaído e socorresse os homens perdidos. Desse modo, sob a lei, a imagem dele
foi representada em sacrifícios, para que os fiéis nutrissem a esperança de que
Deus lhes haveria de ser propício, após ser reconciliado por intermédio da
expiação dos pecados. Certamente, quando em todos os tempos, até mesmo quando a
lei ainda não fora promulgada, o Mediador jamais fora prometido sem sangue,
concluímos que, no eterno desígnio de Deus, fora ele destinado a purgar as
imundícies dos homens, uma vez que o derramamento de sangue veio a ser sinal de
expiação [Hb 9.22]. Assim pregaram os profetas a seu respeito, de sorte a
prometerem que ele haveria de ser o reconciliador de Deus e homens. Bastará
para prová-lo o célebre testemunho de Isaías, no qual diz que ele será ferido
por nossas rebeliões, para que o castigo de nossa paz esteja sobre ele [Is.
53.4, 5], e que seria o Sacerdote que se ofereceria como vítima [Hb 9.11, 12],
que suas feridas seriam para a cura de outros, porque todos se desgarraram, e
se extraviaram como ovelhas, agradando-se Deus em afligi-lo, para que levasse
sobre si as iniqüidades de todos [Is 53.5, 6].225 Quando ouvimos ser Cristo
particularmente devotado por Deus para levar ajuda a míseros pecadores, todo
aquele que vai além destes limites incorre em curiosidade demasiado estulta.
Quando ele apareceu pessoalmente, afirmou ser esta a causa de sua vinda: que,
sendo Deus aplacado, conduzisse ele da morte para a vida. Os apóstolos
atestaram o mesmo a respeito. Assim, antes de ensinar que a Palavra se fez
carne [Jo 1.14], João narra a defecção do homem [Jo 1.9-11]. Mas é melhor que o
ouçamos pessoalmente a sentenciar acerca de seu encargo: “Deus assim amou o
mundo”, diz ele, “que deu seu Filho Unigênito, para que todo aquele que nele
crê não pereça. Pelo contrário, tenha a vida eterna” [Jo 3.16]. De igual modo:
“A hora vemem que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem
viverão” [Jo 5.25]. “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que
esteja morto, viverá” [Jo 11.25]. Também: “O Filho do homem veio para salvar o
que se havia perdido” [Mt 18.11]. Ainda: “Os sãos não têm necessidade de
médico” [Mt 9.12]. Não haveria limite, se eu quisesse mencionar todos os textos
pertinentes. Na verdade, com consenso unânime, evocamos os apóstolos para esta
fonte. E, de fato, a não ser que ele tivesse vindo para reconciliar a Deus,
posta por terra lhe estaria a honra do sacerdócio, visto que o sacerdote se
interpõe por mediador entre Deus e os homens para fazer intercessão [Hb 5.1].
Não seria ele nossa justiça, pois foi feito vítima por nós para que Deus não
nos impute os pecados [2Co 5.19]. Finalmente, despojado será ele de todos os
encômios com que o adorna a Escritura. Por terra cairia também aquela declaração
de Paulo: “Porquanto o que era impossível à lei, Deus enviou seu Filho, para
que na semelhança da carne de pecado fizesse satisfação por nós” [Rm 8.3]. Nem
ficaria de pé o que ensina em outro lugar: que neste espelho se revelou a
bondade de Deus e seu imenso amor para com os homens: em que Cristo foi dado
como Redentor [Tt 3.4]. Enfim, em qualquer outro lugar a Escritura não consigna
outra finalidade para a qual o Filho de Deus quis assumir nossa carne, e tenha
também recebido este encargo da parte do Pai, senão que houvesse de tornar-se
vítima para aplacar o Pai em relação a nós. “Assim foi escrito, e assim se fez
necessário, que Cristo sofresse e fosse pregado arrependimento em seu nome” [Lc
24.46, 47]. “Por isso, o Pai me ama, porque dou minha vida por minhas ovelhas.
Esta incumbência me deu o Pai” [Jo 10.15, 17, 18]. “Como levantou Moisés a
serpente no deserto, assim importa seja levantado o Filho do Homem” [Jo 3.4].
Em outro lugar: “Pai, livra-me desta hora. Mas, foi para essa hora que eu vim.
Pai, glorifica o Filho” [Jo 12.23, 27, 28]. Nestas passagens, o Apóstolo
assinala claramente por que ele assumiu a carne: para que viesse a ser a vítima
e expiação, e assim abolisse os pecados. Pela mesma razão, declara Zacarias [Lc
1.79] que ele veio, segundo a promessa dada aos patriarcas: “para que
iluminasse os que se assentavam na sombra da morte”. Lembremo-nos de que todas
estas coisas foram proclamadas a respeito do Filho de Deus, em quem, em outro
lugar, Paulo testifica “estarem escondidos todos os tesouros do conhecimento e
da sabedoria” [Cl 2.3], e à parte de quem o Apóstolo “se gloria de nada saber”
[1Co 2.2].
João Calvino