O outro requisito de nossa reconciliação com Deus era
este: que o homem, que se havia perdido por sua desobediência, à guisa de
remédio contrapusesse a obediência, satisfizesse ao juízo de Deus, pagasse
integralmente as penalidades do pecado. Portanto, nosso Senhor adiantou-se como
verdadeiro homem, revestiu-se da pessoa de Adão, assumiu-lhe o nome, para que,
em obedecendo-lhe, fizesse as vezes do Pai, para que apresentasse nossa carne
como o preço de satisfação ao justo juízo de Deus, e na mesma carne pagasse
completamente a pena que havíamos merecido. Uma vez que, afinal, nem podia,
como somente Deus, sentir a morte, nem como somente homem podia superá-la,
associou a natureza humana com a divina, para que sujeitasse à morte a fraqueza
de uma, no afã de expiar pecados; e, sustentando luta com a morte pelo poder da
outra, nos adquirisse a vitória. Logo, aqueles que despojam a Cristo ou de sua
divindade, ou de sua humanidade, na realidade lhe diminuem tanto a majestade
quanto a glória, obscurecem igualmente sua bondade. Mas, por outro lado, não
menos detrimento causamaos homens, cuja fé assim abalam e subvertem, a qual não
pode permanecer firme a não ser neste fundamento. Acrescenta que o Redentor que
se devia esperar foi aquele filho de Abraão e de Davi que Deus prometera na lei
e nos profetas, donde as mentes pias colhem um outro fruto: que no próprio
curso de descendência levada até Davi e Abraão reconheçam com certeza maior ser
este o Cristo que foi celebrado em tantos oráculos. Mas, deve-se sustentar
principalmente aquilo que expus há pouco: que a natureza comum que temos com
ele é o penhor de nossa união com o Filho de Deus, e que, vestido de nossa
carne, destruiu ele a morte com o pecado, para que a vitória e o triunfo fossem
nossos; ofereceu ele em sacrifício a carne que recebeu de nós, para que, feita
a expiação, apagasse nossa culpa e aplacasse justa ira do Pai.
João Calvino