Geralmente esses
vultos eclesiásticos costumam atribuir ao livre desígnio do homem as coisas
intermédias, que evidentemente nada têm a ver com o reino de Deus, mas atribuir
a verdadeira justiça à graça especial de Deus e à regeneração espiritual.
No afã de tornar isto evidente, o autor da obra A Vocação dos
Gentios enumera uma tríplice vontade: a primeira, sensória; a
segunda, animal; a terceira,
espiritual, das quais as duas primeiras ensinam que o homem
as tem livres, sendo a última obra do Espírito Santo no homem. Se porventura
isto é procedente, será analisado em seu devido lugar, pois agora o
propósito é apenas mencionar sucintamente as opiniões dos outros, não
refutá-las.
Daqui
resulta que esses escritores, quando tratam do livre-arbítrio, cogitam
acima de tudo não de que papel exerça ele em relação às ações civis ou
externas; ao contrário, de que poder se reveste no que se reporta à obediência
da lei divina. Reconheço ser esta última questão a principal, contudo em
moldes tais que julgo não dever negligenciar-se completamente a primeira.
Espero poder apresentar uma razão bem satisfatória deste meu ponto de
vista.
Veio,
porém, a prevalecer entre as escolas a distinção que enumera uma tríplice liberdade:
a primeira, da necessidade; a segunda, do pecado; a terceira, da miséria,
das quais a primeira é por natureza de tal forma inerente ao homem que de
nenhum modo pode ser alijada; as outras duas foram perdidas mediante o pecado.
De bom grado acolho esta distinção, exceto que aqui se confunde, indevidamente,
necessidade com coação. Quanto de diferença haja entre elas e quão necessário
se deva considerar isto, evidenciar-se-á em outro lugar.
João
Calvino