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segunda-feira, 9 de julho de 2018

OS PATRÍSTICOS, AINDA QUE UM TANTO AMBIGUAMENTE, ESPOSAM O LIVREARBÍTRIO


Entre os escritores eclesiásticos do passado, embora não existisse ninguém que não tenha reconhecido não só ter sido a sanidade da razão no homem gravemente ferida através do pecado, como também extremamente enredilhada à vontade em desejos corruptos, muitos deles, no entanto, têm se aproximado dos filósofos muito mais do que é justo. Dentre os quais, os mais antigos a mim me parecem ter assim
exaltado os poderes humanos com este intento: em primeiro lugar, para que não provocassem a galhofados próprios filósofos com quem estavam então a contender, se viessem a confessar francamente a carência humana de capacidade; em segundo lugar, para que não oferecessem nova ocasião de inércia à carne, de sua própria
vontade é demasiado embotada para o bem. Portanto, para que não ensinassem algo absurdo ao comum sentir dos homens, esforçaram-se por, a meio termo, conciliar a doutrina da Escritura com os dogmas da filosofia. Contudo, é evidente de suas próprias palavras que eles atentaram primordialmente para este segundo ponto: não dar
lugar à inércia.
Diz Crisóstomo, em algum lugar: “Porquanto Deus pôs em nosso poder o bem e o mal, deu-nos o livre-arbítrio da escolha, e quando não queremos não nos força; quando, porém, queremos, nos abraça.”Igualmente: “Não raro, aquele que é mau, se for desejado, muda-se em bom; e aquele que é bom, por inércia, cai e se torna
mau, porquanto o Senhor nos fez com uma natureza dotada do livre-arbítrio. Nem impõe ele necessidade. Pelo contrário, providos os remédios apropriados, tudo deixa ficar ao arbítrio do enfermo.” De novo: “Assim como nada jamais podemos fazer retamente, a não ser se ajudados pela graça de Deus, assim também, a menos que tenhamos de acrescentar o que é nosso, não poderemos alcançar o favor superno.” Ele, porém, dissera antes: “Para que não seja tudo do auxílio divino, importa ao mesmo tempo que algo tragamos nós.” E por isso a cada passo é-lhe corriqueira esta palavra: “Tragamos o que é nosso; o restante Deus suprirá.” Consistente com isso é o que Jerônimo diz: “Nosso é o começar, de Deus, porém, o terminar; nosso,
oferecer o que podemos, dele prover o que não podemos.”
Destas afirmações vês, sem dúvida, que, mais do que era justo, esses patrísticos prodigalizaram ao homem o zelo para com a virtude, pois pensavam não poderem despertar de outra maneira o torpor a nós ingênito, a não ser que nos acusassem de pecar só em função dele. Com quão grande habilidade, porém, veremos em seguida o que foi feito por eles. Com efeito, dentro em pouco ficará patente que essas postulações às quais nos reportamos são de todo falsas.
Ademais, embora os gregos, mais que outros, e entre eles singularmente Crisóstomo, excederam o limite em exaltar a capacidade da vontade humana, contudo todos os antigos, excetuado Agostinho, nesta matéria a tal ponto ou divergem, ou vacilam, ou falam confusamente, que de seus escritos quase nada de certo se pode
referir. E assim não nos deteremos a enumerar mais precisamente as opiniões de um a um, mas apenas respigaremos de passagem, de cada um, o quanto o teor do argumento parecer exigir.
Os que seguiram após, enquanto cada um procura captar em favor de si próprio o louvor da argúcia na defesa da natureza humana, decaíram, pouco a pouco, uns após os outros, em um contínuo cada vez pior, até que se chegou a isto: que o homem, corrompido apenas na parte sensória, se viesse generalizadamente a reputar
ter inteiramente incólume a razão e também, em sua maior parte, a vontade. Enquanto isso, volitou na boca de todos este postulado: que os dotes naturais do homem se corromperam; detraídos, porém, os supernaturais. Qual, entretanto, o alcance disso, mal um em cem sequer de leve o degustou. Na verdade, se eu quisesse com clareza ensinar qual é a corrupção da natureza, ter-me-ia de facilmente contentar com estas palavras. No entanto, sobremodo interessa ponderar atentamente de que capacidade ainda dispõe o homem, não apenas corrompido em todas as partes de sua natureza, mas também destituído dos dons supernaturais.
Portanto, em referência a esta matéria, falaram demasiado filosoficamente aqueles que se vangloriavam de ser discípulos de Cristo. Ora, sempre subsistiram entre os latinos a expressão livre-arbítrio, como se o homem permanecesse íntegro até o presente. Os gregos, porém, não se acanharam em fazer uso de vocábulo muito mais presunçoso, por isso se diziam auvtexou,sion [aut$xoúsi(n possuído de poder próprio], como se por si só o poder residisse no homem.
Logo, uma vez que todos, até mesmo o povo comum, estão imbuídos deste princípio, que o homem é dotado de livre-arbítrio, não obstante o fato é que mesmo alguns deles, que desejam parecer sofisticados, desconhecem até onde ele se estende.
Nós, antes, perscrutemos o alcance do termo; então, da singeleza da Escritura, determinemos o que, para o bem ou para o mal, por sua própria natureza pode o homem.
O que fosse o livre-arbítrio, poucos o têm definido, ainda que nos escritos de todos essa expressão ocorra repetidamente. Orígenes,16 contudo, parece ter proposto isto, acerca de que entre eles, indistintamente, havia consenso, quando disse: “O livre-arbítrio é a faculdade da razão para discernir o bem ou o mal, a faculdade da
vontade para escolher um ou outro desses dois.” Agostinho não discorda dele quando ensina que o livre-arbítrio é a faculdade da razão e da vontade pela qual, assistindo-as a graça, se escolhe o bem, deixando ela de assisti-las, escolhe-se o mal. Já que prefere falar de maneira sofisticada, Bernardo se expressa de modo mais obscuro
dizendo que o livre-arbítrio é o acordo que resulta da indirimível liberdade da vontade e do indeclinável julgamento da razão. A definição de Anselmo não é bastante explícita, o qual ensina que o livre-arbítrio é o poder de conservar a retidão em função de si própria.
Dessa forma, Pedro Lombardo e os escolásticos favorecerama definição de Agostinho, porquanto não só era mais inteligível, como também não excluía a graça de Deus, sem a qual viam que a vontade, de si mesma, não bastava. Contudo, também eles próprios acrescentam suas noções que, ou julgavam ser melhores, ou que pensavam contribuírem para explicação mais completa. Estão de acordo, em primeiro lugar, em que o substantivo arbítrio se deve referir antes à razão, à qual cabe discernir entre o bom e o mau, enquanto o adjetivo livre pertence propriamente à vontade, que se pode vergar para uma ou outra dessas duas alternativas. Portanto, como a
liberdade cabe propriamente à vontade, Tomás de Aquino pensa que uma excelente definição é: o livre-arbítrio é o poder de escolha que, na verdade, mixto de inteligência e apetite, contudo mais se inclina para o apetite.
Já temos em quais elementos ensinam estar situado o poder do livre-arbítrio, isto é, na razão e na vontade. Resta agora ver, sucintamente, quanto atribuem a uma e a outra dessas duas partes.

João Calvino