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quinta-feira, 5 de julho de 2018

AS DUAS FACETAS DO REAL CONHECIMENTO DE NÓS MESMOS


Daí, embora a verdade de Deus nisto concorde com o consenso geral de todos os mortais, a saber, que o segundo aspecto da sabedoria reside no conhecimento de nós mesmos, entretanto é grande a divergência na própria maneira de alcançar esse conhecimento. Ora, segundo o método da carne em seu julgar, o homem parece ter aprofundado conhecimento de siaté que, arrimado tanto em seu entendimento, quanto em sua integridade, se deixa dominar pela ousadia e se incita aos reclamos da virtude, e declarada guerra aos vícios tenta aplicar-se com todo empenho àquilo que é nobre e honroso.
Quem, no entanto, se mira e examina segundo a norma do juízo divino, nada
encontra que eleve seu ânimo à genuína confiança pessoal. E quanto mais penetrantemente a si perscruta, tanto mais se deprime, até que, havendo abdicado inteiramente a toda confiança pessoal, nada deixa a si mesmo para regular a vida retamente. Contudo, tampouco quer Deus que nos esqueçamos de nossa nobreza primeva, nobreza que conferira a nosso pai Adão, nobreza que por certo deve, com razão, despertar nosso zelo pela justiça e pela bondade. Pois não podemos sequer pensar, seja em nossa própria condição original, seja para quê fomos criados, que não sejamos
acicatados a meditar na imortalidade e a anelar pelo reino de Deus. Tão longe
está, porém, este reconhecimento de fomentar-nos a presunção, ao contrário, subjugada esta, à humildade nos prostra. Ora, que condição original é essa? Evidentemente, aquela da qual decaímos. Qual é o propósito de nossa criação? Aquele do qual estamos de todo alienados. Por isso, enfastiados de nossa mísera situação, gemamos; e, gemendo, suspiremos por aquela dignidade perdida. Quando, porém, dizemos que ao homem importa nada ver em si próprio que o torne presunçoso, queremos dizer que nada existe nele cujo arrimo se deva tomar como motivo de orgulho.
Portanto, se assim se prefere, dividamos o conhecimento de si próprio que o
homem deve ter, de tal modo que, em primeiro lugar, considere para que fim foi criado e provido de dotes que não se deve desprezar, mercê de cuja reflexão se desperte à meditação do culto divino e da vida futura; em segundo lugar, pondere suas capacidades; ou, de fato, sua carência de capacidades, a qual, uma vez percebida, se prostre em extrema confusão, como que reduzido a nada. A primeira consideração tende a isto: que o homem reconheça qual seja seu dever; a segunda, de que recursos dispõe para desempenhá-lo. A um e outro desses dois aspectos haveremos de discutir, segundo o exigir a seqüência da exposição.


João Calvino