Daí, embora
a verdade de Deus nisto concorde com o consenso geral de todos os mortais, a
saber, que o segundo aspecto da sabedoria reside no conhecimento de nós mesmos,
entretanto é grande a divergência na própria maneira de alcançar esse conhecimento.
Ora, segundo o método da carne em seu julgar, o homem parece ter aprofundado
conhecimento de siaté que, arrimado tanto em seu entendimento, quanto em
sua integridade, se deixa dominar pela ousadia e se incita aos reclamos da
virtude, e declarada guerra aos vícios tenta aplicar-se com todo empenho àquilo
que é nobre e honroso.
Quem, no
entanto, se mira e examina segundo a norma do juízo divino, nada
encontra
que eleve seu ânimo à genuína confiança pessoal. E quanto mais penetrantemente a
si perscruta, tanto mais se deprime, até que, havendo abdicado inteiramente a
toda confiança pessoal, nada deixa a si mesmo para regular a vida
retamente. Contudo, tampouco quer Deus que nos esqueçamos de nossa nobreza
primeva, nobreza que conferira a nosso pai Adão, nobreza que por
certo deve, com razão, despertar nosso zelo pela justiça e pela bondade. Pois
não podemos sequer pensar, seja em nossa própria condição
original, seja para quê fomos criados, que não sejamos
acicatados
a meditar na imortalidade e a anelar pelo reino de Deus. Tão longe
está, porém,
este reconhecimento de fomentar-nos a presunção, ao contrário, subjugada esta,
à humildade nos prostra. Ora, que condição original é essa?
Evidentemente, aquela da qual decaímos. Qual é o propósito de nossa
criação? Aquele do qual estamos de todo alienados. Por isso, enfastiados
de nossa mísera situação, gemamos; e, gemendo, suspiremos por aquela
dignidade perdida. Quando, porém, dizemos que ao homem importa nada ver em si próprio
que o torne presunçoso, queremos dizer que nada existe nele cujo arrimo se
deva tomar como motivo de orgulho.
Portanto,
se assim se prefere, dividamos o conhecimento de si próprio que o
homem deve
ter, de tal modo que, em primeiro lugar, considere para que fim foi criado e
provido de dotes que não se deve desprezar, mercê de cuja reflexão se desperte à meditação do culto
divino e da vida futura; em segundo lugar, pondere suas capacidades; ou, de fato, sua carência de
capacidades, a qual, uma vez percebida, se prostre em extrema confusão, como
que reduzido a nada. A primeira consideração tende a isto: que o homem reconheça
qual seja seu dever; a segunda, de que recursos dispõe para desempenhá-lo. A um
e outro desses dois aspectos haveremos de discutir, segundo o exigir a
seqüência da exposição.
João
Calvino