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sábado, 7 de julho de 2018

DESOBEDIÊNCIA, O FATOR DA QUEDA NO ÉDEN


Uma vez que não é um delito leve, mas um crime abominável, aquele que Deus puniu com tanta severidade, somos levados a considerar a própria natureza do pecado na queda de Adão, a qual transmitiu a todo o gênero humano horrível punição de Deus.
É pueril o que tem sido vulgarmente admitido quanto à intemperança da gula.
Como se de fato, na abstinência de apenas uma única espécie de fruta, tenha residido a suma e essência de todas as virtudes, quando por toda parte sobejavam todas e quantas delícias apetecíveis, e naquela abençoada fecundidade da terra lhe estava à mão a fartar, não apenas abundância, como também variedade! Deve-se, portanto, mirar mais alto, visto que a proibição da árvore do conhecimento do bem e do mal foi um teste de obediência; de modo que, ao obedecer, Adão podia provar que se sujeitava à autoridade de Deus, de livre e deliberada vontade. Com efeito, o próprio nome da árvore evidencia que o propósito do preceito não era outro senão que, contente com sua sorte, o homem não se alçasse mais alto, movido de ímpia cobiça.
Mas a promessa mediante a qual ele poderia fazer jus à vida eterna por todo tempo em que comesse da árvore da vida, bem como, em contrário, o horrendo anúncio de morte, assim que provasse da árvore do conhecimento do bem e do mal, visava a testar-lhe e a exercitar-lhe a fé. Daqui, não é difícil concluir de que maneiras Adão provocou a ira de Deus contra si.
Na verdade, não de forma improcedente, pronuncia-se Agostinho,4 quando diz que o orgulho foi o princípio de todos os males, porque, não houvesse a ambição impelido o homem acima do que era próprio e justo, poderia ele permanecer em sua condição original. Contudo, da própria natureza da tentação que Moisés descreve deve buscar-se definição mais completa. Ora, uma vez que, por sua falta de fidelidade,
a mulher é afastada da Palavra de Deus pela sutileza da serpente, já se comprova que o princípio da queda foi a desobediência. É o que também Paulo confirma, ensinando que, pela desobediência de um só homem, todos se tornaram perdidos [Rm 5.19].
Entretanto, ao mesmo tempo é preciso notar que o primeiro homem se alijou da soberania de Deus, porque não só se fez presa aos engodos de Satanás, mas ainda, desprezando a verdade, se desviou para a mentira. E de fato, desprezada a palavra de Deus, quebrantada lhe é toda reverência, pois não se preserva de outra maneira sua majestade entre nós, nem seu culto é mantido íntegro, a não ser enquanto atenciosamente ouvirmos sua voz. Conseqüentemente, a raiz da queda foi a falta de fidelidade.
Mas, daqui emergiram ambição e orgulho, aos quais foi adicionada ingratidão, porquanto, ao desejar mais do que lhe fora concedido, ignobilmente Adão desdenhou a tão grande liberalidade de Deus pela qual havia sido enriquecido. Na verdade, esta foi uma impiedade monstruosa, a saber, a um filho da terra parecer pouco
que fosse criado à semelhança de Deus, se também não lhe fosse acrescentada a igualdade.
Se a apostasia, pela qual o homem se subtrai ao mando de seu Criador, é uma vil e execrável ofensa, ou, melhor dizendo, insolentemente lança de si o jugo, é debalde tentar atenuar o pecado de Adão. Se bem que não foi simples apostasia; ao contrário,
apostasia associada com vis impropérios contra Deus, já que Adão e Eva subscrevem às caluniosas insinuações de Satanás, com que acusa falsamente a Deus de mentira, de inveja e de maldade.
Por fim, a falta de fidelidade abriu a porta à ambição; a ambição, porém, foi a mãe da obstinação, de sorte que os homens, alijando o temor de Deus, se arrojaram aonde quer que os levava a cupidez. E assim corretamente ensina Bernardo,6 que a porta da salvação nos está aberta quando, hoje, recebemos pelos ouvidos o evangelho,
exatamente como, quando se escancararam a Satanás, foi por essas janelas introduzida a morte. Ora, jamais teria Adão ousado repudiar o imperativo de Deus, a não ser que não lhe desse crédito à palavra. Era este, de fato, o melhor freio para adequadamente regular-lhe todas as inclinações: que nada é melhor do que, mercê de estrita obediência aos preceitos de Deus, amar a justiça; em seguida, que a meta
final da vida feliz é ser por ele amado. Portanto, arrebatado pelas blasfêmias do Diabo, Adão aniquilou, quanto estava a seu alcance, toda a glória de Deus.

João Calvino