Visto que
já dissemos pouco antes que as faculdades da alma estão sediadas na mente e no
coração, consideremos agora de que poder se reveste uma e outra dessas partes do
ser. Na verdade os filósofos imaginam com avultado consenso que é na mente
que se radica a Razão, a qual, à
semelhança de uma lâmpada, ilumina a todas
as
decisões, e à maneira de uma rainha governa a vontade. Pois, a tal ponto supõem
ter sido a mesma banhada da luz divina para que possa decidir com muito acerto,
e nesse poder exceler a tal ponto que possa reger com muita eficiência.
Em contraposição, imaginam que a sensibilidade
está tão embotada e tão eivada de obtusidade de visão,
que sempre rasteje ao solo e se revolva nos mais vis objetos, nem jamais se alce
ao verdadeiro discernimento; o apetite, se porventura consegue obedecer à razão, nem se
deixa sujeitar à sensibilidade, é levado ao cultivo das virtudes, a reta via
conserva e em vontade se conforma;
se entretanto se entrega à servidão da sensibilidade,
é por ela a
tal ponto corrompido e depravado, que degenera em concupiscência.
E como,
segundo a opinião deles, dentro em nós subsistem plenamente essas faculdades
da alma que acima referi – intelecto, sensibilidade e apetite ou vontade
–, sendo esta última designação já agora recebida em uso mais
vulgarizado, postulam esses filósofos que o intelecto é dotado da razão, a mais
sublimada gestora para
se viver
bem e afortunadamente, contanto que o próprio intelecto
se sustenha em sua excelência e dê vazão à força de natureza a si
conferida. Seu impulso inferior, porém, que se denomina sensibilidade,
mercê da qual o homem é arrastado ao erro
e ao
engano, é tal que pode ser domado e aos poucos quebrantado pela palmatória da
razão. Além disso, a meio caminho entre a razão e a sensibilidade colocam a vontade,
naturalmente senhora de seu direito e de sua liberdade, seja que lhe
apraza obedecer à razão, seja prostituir-se à sensibilidade, para ser dela violentada.
João
Calvino