Desse modo,
pois, dir-se-á que o homem é dotado de livre-arbítrio: não porque tenha livre
escolha do bem e do mal, igualmente; ao contrário, porque age mal por vontade,
não por efeito de coação. Por certo que isto soa muito bem. Mas,
a que servia etiquetar com título tão pomposo coisa de tão reduzida
importância? Excelente liberdade, sem dúvida, seria se com efeito o homem não
fosse compelido pelo pecado a servi-lo; se, no entanto, é evqelo,douloj [(doul(s
– escravo por querer;
escravo por vontade], de sorte que a vontade lhe
é mantida amarrada pelas peias do pecado!
Certamente
que abomino logomaci,aj [(machías – contendas de palavras] com as
quais a Igreja em vão se afadiga, porém julgo ser religiosamente preciso evitar
estas palavras que soam algo absurdo, principalmente quando induzem
perniciosamente ao erro. Indago, porém, quão poucos são os que, em
ouvindo atribuir-se livre-arbítrio ao homem, imediatamente não o concebam ser
senhor tanto de sua mente quanto da vontade, tanto que possa de si mesmo
vergar-se para uma e outra dessas duas partes?
Contudo,
alguém dirá que é preciso afastar perigo desta natureza, se cuidadosamente o
povo em geral for informado quanto ao exato sentido desta expressão.
Na realidade, porém, como o coração humano propende espontaneamente para
a falsidade, de uma palavrinha só o erro sorverá mais depressa do que faz
extenso discurso em prol da verdade. Nesta própria expressão temos deste fato
mais indisputável experiência do que seria de se almejar. Ora, enquanto se
apega à etimologia do termo, deixada de lado aquela interpretação dos escritores
antigos, quase toda a posteridade tem sido arrastada à ruinosa confiança
pessoal.
João
Calvino