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sábado, 14 de julho de 2018

A CONCEPÇÃO AGOSTINIANA DA LIBERDADE DA VONTADE


Pois se nos move a autoridade dos Pais, certamente que eles mantêm constantemente nos lábios a expressão livre-arbítrio, contudo ao mesmo tempo declaram em que acepções a usavam. Em primeiro lugar, temos Agostinho, que não hesita em dizer ser ele servo.23 É verdade que, em certo lugar, esbraveja contra os que negam o livrearbítrio.
A razão primordial de agir assim ele a declara quando diz: “Apenas não ouse alguém assim negar o arbítrio da vontade que dessa forma queira escusar o pecado.”
Contudo firmemente confessa, em outro lugar, que sem o Espírito a vontade do homem não é livre, uma vez que se fez sujeita a desejos que a acorrentam e a dominam. De igual modo, vencida a vontade pela depravação em que caiu, a natureza humana começou a carecer de liberdade.26 Também, fazendo mal uso do livrearbítrio, o homem não só a si mesmo se perdeu, mas ainda a seu arbítrio.27 Igualmente,
a tal ponto o livre-arbítrio se fez cativo, que nenhum poder possui para a prática da justiça.  Ainda, não pode ser livre o que a graça de Deus não libertar.29 Ademais, não se cumpre a justiça de Deus quando a lei o ordena e o homem o faz como que de suas próprias forças; ao contrário, quando o Espírito assiste e a vontade do homem – não que seja livre, mas porque foi libertada por Deus – obedece.30 E de tudo isso oferece, sucintamente, a razão, quando escreve em outro lugar que o homem, quando foi criado, recebeu grandes poderes de livre-arbítrio; contudo, ao pecar, os perdeu.
E assim, em outra passagem, depois de mostrar que o livre-arbítrio é estabelecido pela graça, investe asperamente contra aqueles que a si o reivindicam sem a graça. “Portanto”, diz ele, “por que razão ousam ensoberbecer-se, homens miserandos, ou, quanto ao livre-arbítrio, antes de serem libertados; ou, se já foram libertados, quanto a suas forças?”
Nem atentam para o fato de que na própria expressão “livre-arbítrio” está, de fato, implícita essa libertação. Ora, onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade [2Co 3.17]. Se, pois, são escravos do pecado, por que se vangloriam do livrearbítrio?
Com efeito, por quem foi alguém vencido, a esse também foi por servo
judicialmente declarado [2Pe 2.19]. Mas, se foram libertados, por que se vangloriam como de sua própria ação? Porventura são a tal ponto livres que nem queiram ser servos daquele que diz: “Sem mim nada podeis fazer” [Jo 15.5]?32 Que mais dizer, já que, ainda em outro lugar, é como se jocosamente gracejasse quanto ao uso desta expressão, quando diz que, de fato, o arbítrio é livre, porém não libertado: livre da justiça, servo do pecado?33 Esta afirmação ele a repete e a explica
também em outro lugar, onde ensina que o homem não é livre da justiça, senão pelo arbítrio da vontade; contudo não se faz livre do pecado, senão pela graça do Salvador.
Aquele que atesta não ser a liberdade do homem outra coisa senão emancipação ou manumissão da justiça, parece estar meramente escarnecendo do nome vazio de sentido.
E assim, se alguém admite o uso desta expressão em acepção não desvirtuada, por certo que não será por mim molestado por essa razão. Todavia, porque julgo que não se pode retê-la sem ingente perigo, e, ao contrário, seria um grande bem para a Igreja se fosse ignorada, preferiria não usá-la; e se os outros me consultam, optaria
que se faria bem abstendo-se de usá-la.

João Calvino