Pois se nos
move a autoridade dos Pais, certamente que eles mantêm constantemente nos
lábios a expressão livre-arbítrio, contudo ao mesmo tempo declaram em que
acepções a usavam. Em primeiro lugar, temos Agostinho, que não hesita em
dizer ser ele servo.23 É verdade que, em certo lugar,
esbraveja contra os que negam o livrearbítrio.
A razão
primordial de agir assim ele a declara quando diz: “Apenas não ouse alguém
assim negar o arbítrio da vontade que dessa forma queira escusar o
pecado.”
Contudo
firmemente confessa, em outro lugar, que sem o Espírito a vontade do homem não
é livre, uma vez que se fez sujeita a desejos que a acorrentam e a
dominam. De igual modo, vencida a vontade pela depravação em que caiu, a
natureza humana começou a carecer de liberdade.26 Também, fazendo mal
uso do livrearbítrio, o homem não só a si mesmo se perdeu, mas ainda a
seu arbítrio.27 Igualmente,
a tal ponto o livre-arbítrio se fez cativo, que nenhum poder
possui para a prática da justiça. Ainda, não pode ser livre o que a graça
de Deus não libertar.29 Ademais, não se cumpre a justiça de Deus quando
a lei o ordena e o homem o faz como que de suas próprias
forças; ao contrário, quando o Espírito assiste e a vontade do homem –
não que seja livre, mas porque foi libertada por Deus – obedece.30
E de tudo isso oferece, sucintamente, a razão, quando escreve em outro
lugar que o homem, quando foi criado, recebeu grandes poderes de
livre-arbítrio; contudo, ao pecar, os perdeu.
E assim, em
outra passagem, depois de mostrar que o livre-arbítrio é estabelecido pela
graça, investe asperamente contra aqueles que a si o reivindicam sem
a graça. “Portanto”, diz ele, “por que
razão ousam ensoberbecer-se, homens miserandos, ou, quanto ao livre-arbítrio,
antes de serem libertados; ou, se já foram libertados, quanto a suas forças?”
Nem atentam
para o fato de que na própria expressão “livre-arbítrio” está, de fato,
implícita essa libertação. Ora, onde está o Espírito do Senhor, aí está
a liberdade [2Co 3.17]. Se, pois, são escravos do pecado, por que se vangloriam
do livrearbítrio?
Com efeito,
por quem foi alguém vencido, a esse também foi por servo
judicialmente
declarado [2Pe 2.19]. Mas, se foram libertados, por que se vangloriam como de
sua própria ação? Porventura são a tal ponto livres que nem queiram ser servos
daquele que diz: “Sem mim nada podeis fazer” [Jo 15.5]?32 Que mais dizer,
já que, ainda em outro lugar, é como se jocosamente gracejasse quanto ao uso
desta expressão, quando diz que, de fato, o arbítrio é livre, porém não libertado:
livre da justiça, servo do pecado?33 Esta afirmação ele a repete
e a explica
também em
outro lugar, onde ensina que o homem não é livre da justiça, senão pelo arbítrio
da vontade; contudo não se faz livre do pecado, senão pela graça do Salvador.
Aquele que atesta não ser a liberdade do homem outra coisa
senão emancipação ou manumissão da justiça, parece estar meramente escarnecendo
do nome vazio de sentido.
E assim, se
alguém admite o uso desta expressão em acepção não desvirtuada, por certo que
não será por mim molestado por essa razão. Todavia, porque julgo que não se
pode retê-la sem ingente perigo, e, ao contrário, seria um grande bem para a Igreja
se fosse ignorada, preferiria não usá-la; e se os outros me consultam, optaria
que se
faria bem abstendo-se de usá-la.
João
Calvino