Acima, porém, dos
demais, paira esse insigne pronunciamento de Jó: “Sei que meu redentor vive, e
que no dia último haverei de ser ressuscitado da terra, e em minha carne verei
a Deus, meu salvador. Posta está em meu seio esta minha esperança” [Jó
19.25-27]. Quantos querem ostentar sua habilidade, cavilam dizendo que estas
declarações não podem ser entendidas como uma referência à ressurreição final,
mas ao primeiro dia, qualquer que tenha sido, em que Jó esperava que Deus
haveria de vir a ser mais benigno com ele; com o quê, embora concordemos em
parte, contudo arrancaremos deles, queiram ou não, isto: Jó não teria chegado a
esta amplitude de esperança, se em pensamento tivesse se deixado ficar na
terra. Portanto, há que convir em que ele fixou seus olhos na imortalidade
futura, pois compreendeu que, inclusive na sepultura, seu Redentor se
preocupara com ele; já que a morte é o supremo desespero para os que têm seus
pensamentos exclusivamente neste mundo, este não podia tirar-lhe a
esperança.213 “Ainda que ele me mate”, dizia, “nele, entretanto, esperarei” [Jó
13.15]. E se algum obstinado murmura contra isto, dizendo que bem poucos
pronunciaram palavras semelhantes, e por isso não se pode provar que esta foi
uma doutrina comumente admitida pelos judeus, a esse lhe responderei no ato,
dizendo que estes, com suas palavras, não quiseram ensinar uma espécie de
sabedoria oculta, só acessíveis a uns poucos espíritos excelentes e
particularmente dotados, pois os que pronunciaram estas palavras foram pelo
Espírito Santo constituídos doutores, e abertamente ensinaram a doutrina que o
povo haveria de professar.214 Portanto, quando ouvirmos os oráculos públicos do
Espírito Santo, nos quais dissertou tão clara e lucidamente acerca da vida
espiritual na igreja dos judeus, de intolerável renitência haverá de ser
relegá-los a um pacto meramente carnal, em que se faça menção só da terra e da
opulência terráquea.
João Calvino