Se porventura eu descer
aos profetas posteriores, então, na verdade, nos será possível divagar
livremente, como em campo próprio. Ora, se em Davi a vitória não foi difícil,
em Jó e Samuel será muito mais fácil aqui. Pois o Senhor susteve esta economia
e esta ordem na administração do pacto de sua misericórdia, de sorte que,
quanto mais com o correr do tempo se aproximava o dia da plena revelação, com
tanto maior clareza o quis anunciar. Assim, no início, quando a Adão foi dada a
primeira promessa de salvação [Gn 3.15], como que brilharam tênues centelhas; depois, feito suplemento, maior
amplitude de luz começou a difundir-se, luz que, a seguir, despontou mais e
mais e projetou seu fulgor mais largamente, até que, enfim, dissipadas todas as
nuvens, o Sol da Justiça, Cristo, iluminou, em toda a plenitude, todo o orbe da
terra. Logo, não é de temer-se que, se para comprovar nossa causa busquemos os
sufrágios dos profetas, esses sufrágiosnos falhassem. Entretanto, uma vez que
vejo ter que subsistir ingente floresta de material, em que se faz necessário
deter-nos muito mais demoradamente do que permita o plano programado, pois
seria necessário longo volume, e, ao mesmo tempo, julgo haver eu, mercê das
coisas ditas previamente, distendido até mesmo ao leitor pouco perspicaz um caminho
pelo qual possa avançar em marcha desimpedida, abster-me-ei de prolixidade
inteiramente desnecessária no presente; contudo, avisados os leitores
antecipadamente, a que se lembrem de abrir para si o caminho com esta chave que
lhes pusemos anteriormente na mão. Isto é, quantas vezes celebram os profetas a
bem-aventurança do povo fiel, da qual na presente vida mal se percebem sequer
mínimos vestígios, recorram eles a esta distinção: a fim de que melhor
enaltecessem a bondade de Deus, os profetas a apresentaram ao povo através de
benefícios temporários, como uma espécie de figuras; mas, ao mesmo tempo,
quiseram com estas figuras levantar os entendimentos acima da terra, para além
dos elementos deste mundo corruptível, e incitá-los a meditarem por necessidade
na bem-aventurança da vida futura e espiritual.
João Calvino