Com efeito, donde esta diversidade, insistem, senão
porque Deus quis que ela fosse assim? Não pôde ele, porventura, tão bem de
início, quanto após a vinda de Cristo, revelar a vida eterna mediante palavras
explícitas, além de qualquer figura, instruir os seus com uns poucos e claros
sacramentos, prodigalizar o Espírito Santo, difundir pelo orbe inteiro sua
graça? Isto é, na verdade, exatamente como se litigassem com Deus, só porque
criou ele o mundo tão tarde, quando o poderia ter criado desde o princípio, ou
porque quisesse ele que houvesse alternâncias entre inverno e verão, dia e
noite. Nós, porém – o que devem sentir todos os piedosos –, não duvidamos que
tudo quanto foi feito por Deus o foi sabiamente e com justeza, ainda que
freqüentemente desconheçamos a causa por que lhe conveio assim agir. Ora, seria
isto arrogar demais para nós: não conceder a Deus que tenha razões de seu
propósito que nos são ignotas. Mas, dizem, é de admirar que recuse e abomine
agora sacrifícios animais e todo aquele aparato do sacerdócio levítico nos
quais se deleitava outrora. Como se, realmente, estas coisas externas e fugazes
deleitem a Deus ou o afetem de qualquer modo! Já foi dito que Deus não fez
nenhuma destas coisas por sua própria causa; pelo contrário, a todas determinou
em prol da salvação dos homens. Se de uma enfermidade, da melhor maneira
possível, um médico cura a um jovem, mas depois, em prol do mesmo indivíduo, já
envelhecido, usa de outro processo de cura, porventura diremos ter ele
repudiado o método de curar que lhe fora anteriormente do agrado? Ao contrário,
enquanto nele persiste, constantemente, leva em conta o fator da idade. Desse
modo, foi necessário que com uns sinais não só se prefigurasse o Cristo
ausente, mas ainda se proclamasse quando havia de vir; agora, manifestado,
importa que seja representado por outros sinais. No tocante à vocação de Deus
mais amplamente difusa por todos os povos na vinda de Cristo do que fora antes,
e às graças do Espírito mais largamente derramadas, quem, pergunto eu, negaria
ser justo que na mão e arbítrio de Deus esteja a livre dispensação de suas
graças, para que ilumine aquelas nações que ele queira iluminar, nos lugares
que queira promover a pregação de sua palavra, sempre que queira prodigalizar o
progresso e êxito de sua doutrina, nas eras em que o queira, por causa de sua
ingratidão, do mundo detraia o conhecimento de seu nome, em vista de sua
misericórdia, e o restitua quando novamente o queira? Vemos, portanto, que são
calúnias sobremodo indignas, com as quais homens ímpios neste aspecto perturbam
os ânimos dos símplices, para que ponham em dúvida, ou a justiça de Deus, ou a
fidedignidade da Escritura.
João Calvino