A INSUFICIÊNCIA MEDIATORIAL DO HOMEM E A NATUREZA TEANTRÓPICA DO
VERDADEIRO MEDIADOR
Era extremamente necessário que aquele que havia de
ser nosso Mediador fosse verdasdeiro Deus e verdadeiro homem. Se alguém indaga
sobre a necessidade disto, de fato não houve uma necessidade simples ou, como
geralmente dizem, absoluta. Procedeu, antes, do decreto celeste, do qual
dependia a salvação dos homens. Mas, o Pai clementíssimo decretou o que nos era
o melhor. Ora, uma vez que nossas iniqüidades, como se fosse uma nuvem
interposta entre nós e ele, nos alienaram inteiramente do reino dos céus,
ninguém podia ser o intermediário da paz a ser restaurada, senão aquele que
pudesse achegar à sua presença. Quem, no entanto, haveria de achegar-se a ele?
Qualquer dos filhos de Adão? Na verdade todos, com o próprio pai, se apavoravam
ante a visão de Deus [Gn 3.8]. Algum dos anjos? Ora, até mesmo eles tinham
necessidade de um Cabeça, através de cujo vínculo estivessem firme e indissoluvelmente
ligados a seu Deus. E então? A situação, certamente, era irremediável, a não
ser que até nós descesse a própria majestade de Deus, já que não estava a nosso
alcance subir até ele. Daí se fazia necessário que o Filho de Deus viesse a ser
nosso Emanuel, isto é, “Deusconosco” [Is 7.14; Mt 1.23], de tal maneira que sua
divindade e a natureza humana fossem unidas. De outra sorte, nem lhes seria
bastante próxima a contigüidade, nem bastante firme a afinidade, donde nos
resultasse a esperança de Deus habitar conosco. Infinitamente grande era a
discrepância entre nossa sordidez e a suprema pureza de Deus! Ainda que o homem
permanecesse livre de toda mancha, sua condição, entretanto, era abjeta demais
para que se achegasse a Deus sem Mediador. Portanto, que poderia o homem, por
sua ruína mortal abismado na morte e nos infernos, contaminado por tantas
máculas, a tresandar em sua corrupção, enfim, chafurdado em toda maldição?
Logo, querendo apresentar Cristo como o Mediador, não sem causa relembra Paulo
expressamente ser ele homem. Diz ele: “Um é o Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem”
[1Tm 2.5]. Poderia tê-lo chamado Deus; poderia até mesmo omitir o termo homem,
como fizera com a palavra Deus. Mas, porque o Espírito, falando por sua boca,
conhecia nossa fraqueza, para que se desse no momento oportuno, fez uso de um
remédio mais apropriado, exibindo a público o Filho de Deus familiarmente como
um dentre nós. E assim, para que ninguém se atormente investigando onde se
poderia achar esse Mediador, ou de que forma se poderia chegar a ele, ao
denominá-lo de homem nos dá a entender que ele está perto de nós, já que é de
nossa própria carne.223 Certamente refere ele aqui o mesmo que, em muitas
palavras, se explica em outro lugar: não termos nós um Sumo Sacerdote que não
possa sentir conosco nossas fraquezas, já que, só com a exceção do pecado, em
tudo foi ele tentado à nossa maneira [Hb 4.15].
João Calvino