Isto refulgirá melhor
à luz da comparação que Paulo fez na Epístola aos Gálatas. Ele compara a nação
dos judeus a um herdeiro quando criança, que, ainda não idôneo para
governar-se, segue o ditame de um tutor ou curador, a cuja custódia foi
confiado [Gl 4.1-3]. Entretanto, ele refere esta comparação acima de tudo às
cerimônias rituais, nada impedindo a que também aqui se aplique muito
apropriadamente. Portanto, foi-lhes destinada a mesma herança que a nós, mas,
em razão da idade, ainda não eram capazes dela tomar posse e dela tratar.
Estava entre eles a mesma Igreja, todavia, até esse ponto, como que na
infância. Daí, o Senhor os manteve sob esta tutela, de sorte que não lhes desse
as promessas espirituais, aliás, desnudas e manifestas, mas debuxadas, em certa
medida, sob prefigurações terrenas. Portanto, quando à esperança da
imortalidade associava Abraão, Isaque e Jacó, e a posteridade deles,
prometeu-lhes em herança a terra de Canaã, na qual não fundamentassem suas
esperanças, mas de cuja visão se exercitassem e se firmassem na esperança
daquela herança real que ainda não se fazia patente. E para que não viessem a
desvairar no engano, era-lhes dada uma promessa superior, que lhes atestasse
não ser a terra o supremo benefício de Deus. Assim, não se permite que Abraão
ficasse estático na promessa prometida da terra; pelo contrário, mediante uma
promessa maior, sua mente é elevada ao Senhor. Pois, ouve ele: “Abraão, Eu sou
teu protetor e mui grande é teu galardão” [Gn 15.1]. Aqui vemos que a
finalidade do galardão de Abraão é posta no Senhor, para que não buscasse ele
nos elementos deste mundo esse galardão incerto e inconstante; ao contrário, o
refletisse como sendo imarcescível. Em seguida acrescenta a promessa da terra,
não com outra condição senão que seja símbolo da divina benevolência e tipo da
herança celestial, o que declaram os testemunhos ter sido esse seu sentido para
os santos. Desse modo, Davi passa das bênçãos temporais para aquela
bênçãosuprema e final.
“Meu coração e minha
carne”, diz ele, “desfalecem de anseio por ti. Deus é minha porção para sempre”
[Sl 73.26; 84.2]. De novo: “O Senhor é a porção de minha herança e de meu
cálice;tu és aquele que a mim me conservas a herança” [Sl 16.5]. Igualmente: “A
ti clamei, Senhor, disse eu: Tu és minha esperança, minha porção na terra dos
viventes” [Sl 142.5]. Aqueles que ousam assim falar, na verdade estão mostrando
abertamente que, em sua esperança, transcendem ao mundo e a tudo quanto há de
bens presentes. Finalmente, os profetas descrevem esta bem-aventurança do mundo
futuro mais freqüentemente sob a forma do tipo que haviam recebido do Senhor.
Neste sentido devem ser entendidas estas expressões em Jó e, em muitos lugares,
em Isaías, de que “os piedosos possuirão a terra em herança, mas os ímpios
serão dela exterminados” [Jó 18.17]; que Jerusalém abundará em toda espécie de
riquezas e Sião transbordará na abundância de todas as coisas [Is 60.5-9].
Vemos perfeitamente que todas essas coisas não dizem respeito propriamente à
terra de nossa peregrinação ou à Jerusalém terrestre, mas à verdadeira pátria
dos fiéis e àquela cidade celeste em que o Senhor ordenou a bênção e a vida
para sempre [Sl 133.3].
João Calvino