A PRIMEIRA DE CINCO DIFERENÇAS QUE PODEM SER SALIENTADAS ENTRE OS
DOIS TESTAMENTOS, DIFERENÇAS QUE, PORÉM, NÃO LHES AFETAM A UNIDADE
E então? Porventura
dirás que nenhuma diferença é deixada entre Antigo e Novo Testamentos? E o que
se fará a tantas passagens da Escritura, onde entre si se contrastam como
coisas muito diversas? Eu, na verdade, aceito de bom grado as diferenças que se
registram na Escritura, mas de tal modo que nada denigram à unidade já
estabelecida, como se haverá de ver quando as tratarmos na devida ordem. As
principais, porém, quanto me foi possível notar e posso lembrar, são elas
quatro em número, às quais, se apraza acrescentar uma quinta, muito longe estou
de reclamar. Digo que todas estas diferenças são de tal natureza, e
comprometo-me a demonstrálo, que dizem respeito ao modo de administração, antes
que à substância. Por esta razão, nada impedirá que as promessas permaneçam as
mesmas, quer do Antigo, quer do Novo Testamento, e Cristo como sendo o mesmo
fundamento das próprias promessas. Ora, a primeira diferença é que, ainda
quando, também outrora, queria o Senhor alçar as mentes de seu povo à herança
celestial, e elevar os ânimos em relação a ela, todavia, para que em sua
esperança melhor fossem nutridos, a exibia para que fosse contemplada, e como
que degustada, sob a forma de benefícios terrenos. Agora, revelada pelo
evangelho mais clara e diafanamente a graça da vida futura, o Senhor nos dirige
as mentes diretamente à sua meditação, posta de parte a maneira inferior de
exercitação que aplicava em relação aos israelitas. Aqueles que não atentam
para este plano de Deus pensam que o povo antigo não foi além desses benefícios
que eram prometidos ao corpo. Ouvem tantas vezes a menção da terra de Canaã
como a insigne e até mesmo a única recompensa aos cultores da lei divina.
Ouvemo Senhor ameaçar aos transgressores desta mesma lei com a mesma severidade
com que seriam expelidos da posse de sua terra e dispersos por regiões
estranhas [Lv 26.33; Dt 28.36]. Vêem, finalmente, que todas as bênçãos e maldições
que Moisés anuncia vêm quase a este mesmo ponto. Destas coisas postulam, sem a
mínima dúvida, dos demais povos haverem os judeus sido separados não por sua
própria causa, mas por uma causa alheia, a saber, para que a Igreja Cristã pudesse ter uma
representação em cuja forma exterior contemplasse expressões das coisas
espirituais. Quando, porém, algumas vezes a Escritura mostra o próprio Deus
destinando a isso os benefícios terrenos com os quais os aquinhoava, que assim
os estava conduzindo pela mão à esperança celestial, deixar de atentar para
dispensação desta natureza foi de excessiva imperícia, para não
dizerobtusidade. Com esta espécie de homens o ponto de controvérsia consiste em
que eles ensinam que a posse da terra de Canaã constituía para os israelitas a
suprema e última bem-aventurança; e que para nós, depois de Cristo ser
revelado, tipificava a herança celestial. Nós contendemos, em contrário, que na
possessão terrena de que fruíam tinham contemplado como que num espelho a
herança futura que criam ter sido para eles preparada nos céus.
João Calvino