Isto se fará ainda mais claro, se ponderarmos como não
foi vulgar o que o Mediador tinha de executar, isto é, que a tal ponto fôssemos
restaurados à graça de Deus, que de filhos de homensnos fizesse filhos seus; de
herdeiros da Gehena, a herdeiros do reino celestial. Quem poderia fazer isso,
se o mesmo Filho de Deus não se fizesse filho do homem, e de tal forma tomasse
o que é nosso, e nos transferisse o que é seu, e o que era inerentemente seu,
pela graça se fizesse nosso? Portanto, apoiados neste penhor, confiamos ser
filhos de Deus, porque o que por natureza era Filho de Deus, apropriou para si
o corpo de nosso corpo, a carne de nossa carne, os ossos de nossos ossos, para
que fosse precisamente o que somos, e não relutou em assumir o que nos era
próprio, para que, por sua vez, a nós pertencesse o que ele tinha de
propriamente seu, e assim ele, em comum conosco, fosse não só o Filho de Deus,
mas também o Filho do Homem. Daqui essa santa irmandade que recomenda com seus
próprios lábios, quando diz: “Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e
vosso Deus” [Jo 20.17]. Por esta razão, certa nos é a herança do reino celeste,
porque o Filho Único de Deus, a quem ela pertencia por inteiro, nos adotou para
si por irmãos, porque, “se somos irmãos, logo somos também co-participantes da
herança” [Rm 8.17]. Ademais, também por esta causa foi sobremodo proveitoso que
fosse verdadeiro Deus e verdadeiro homem Aquele que haveria de ser nosso
Redentor. Impunhase-lhe aniquilar a morte. Quem poderia fazer isso, a não ser a
própria Vida? Impunha-se-lhe vencer o pecado. Quem poderia fazer isso, a não
ser a própria Justiça? Impunha-se-lhedesbaratar as potestades do mundo e do ar.
Quem poderia fazer isso, a não
ser um Poder superior tanto ao mundo quanto ao ar? Ora, em quem está a vida, ou
a justiça, ou o senhorio e poder do céu, senão unicamente em Deus? Portanto, o Deus
clementíssimo, quando nos quis redimir, se fez nosso Redentor na pessoa do
Unigênito.
João Calvino