Contudo, não foi sem
alguma razão que os antigos escolheram o dia do domingo para pô-lo no lugar do
sábado. Ora, como na ressurreição do Senhor está o fim e cumprimento daquele
verdadeiro descanso que o antigo sábado prefigurava, os cristãos são advertidos
pelo próprio dia que pôs termo às sombras a não se apegarem ao cerimonial
envolto em sombras. Nem a tal ponto, contudo, me prendo ao número sete que
obrigue a Igreja à sua servidão, pois nem haverei de condenar as igrejas que
tenham outros dias solenes para suas reuniões, desde que se guardem da
superstição. Isto ocorrerá, se se mantiver a observância da disciplina e da
ordem bem regulada. A síntese do mandamento é: como aos judeus a verdade era
comunicada sob prefiguração, assim ela, em primeiro lugar, nos é outorgada sem
sombras, para que por toda a vida observemos um perpétuo sabatismo de nossos
labores, a fim de que o Senhor em nós opere por seu Espírito; em segundo lugar,
para que cada um, individualmente, sempre que disponha de lazer, se exercite
diligentemente na piedosa reflexão das obras de Deus. Então, ainda, para que
todos a um tempo observemos a legítima ordem da Igreja, constituída para
ouvir-se a Palavra, para a administração dos sacramentos, para as orações
públicas. Em terceiro lugar, para que não oprimamos desumanamente os que nos
estão sujeitos. E assim se desvanecem-se as mentiras dos falsos profetas, os
quais, em séculos transatos, imbuíram o povo de uma opinião judaica,
asseverando que nada maisfoi cancelado senão o que era cerimonial neste
mandamento, com isto entendem em seu linguajar a fixação do dia sétimo, mas
remanescer o que é moral, isto é, a observância de um dia na semana. Com
efeito, isto outra coisa não ésenão mudar o dia por despeito aos judeus e reter
em mente a mesma santidade do dia, uma vez que ainda nos permanece nos dias
sentido de mistério igual ao que tinha lugar entre os judeus. E de fato vemos
que proveito têm fruído com tal doutrina, pois quantos deles se apegam às
estipulações superam três vezes aos judeus em sua crassa e carnal superstição
de sabatismo, de sorte que as reprimendas que lemos em Isaías [1.13-15; 58.13]
nada menos lhes convêm hoje que àqueles a quem o Profeta increpava em seu
tempo.
Contudo, importa
manter-se, principalmente, o ensino geral: para que a religião não pereça ou
enlanguesça entre nós, devem ser realizadas diligentemente as reuniões sagradas
e deve dar-se atenção aos meios externos que servem para fomentar o culto
divino.
João Calvino