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terça-feira, 30 de outubro de 2018

O ASSENTIMENTO DO POVO NA ELEIÇÃO OU INDICAÇÃO DOS BISPOS ATÉ O TEMPO DE TEODORETO, NO SÉCULO IV

Ao povo foi conservada por longo tempo sua liberdade em escolher os bispos, para que não se impusesse alguém que não fosse aceito por todos. Portanto, no Concílio de Antioquia foi proibido que se impingisse como bispo alguém que não o desejasse, o que também Leão I diligentemente confirma. Daqui estas suas injunções: “Seja eleito aquele a quem o clero e o povo, ou o maior número, hajam pedido”; igualmente: “Aquele que haverá de presidir a todos seja eleito por todos, pois quem é preposto desconhecido e não examinado, é necessidade que seja imposto pela força”; ainda: “Seja escolhido aquele que, eleito pelos clérigos, seja solicitado pelo povo e seja consagrado pelos bispos da província com a sanção do metropolitano.” Mas, os santos pais sobremodo se acautelaram que de modo nenhum fosse diminuída esta liberdade do povo, que ao ordenar o Sínodo Geral congregado em Constantinopla a Nectário, isso não quis fazer sem a aprovação de todo o clero e o povo, como o atestou sua carta ao Sínodo de Roma. Daí também, quando algum bispo designasse para si um sucessor, a designação era confirmada não de outra forma sem que todo o povo a ratificasse, coisa de que se tem não só exemplo, mas também a fórmula em Agostinho,45 na nomeação de Eráclio. E Teodoreto, quando afirma que Pedro foi por Atanásio nomeado sucessor, imediatamente acrescenta que a ordem sacerdotal teve isso confirmado, e o magistrado, os principais cidadãos e todo o povo o aprovaram com sua aclamação.

João Calvino

O PROCESSO DE INDICAÇÃO E INVESTIDURA DE MINISTROS NA IGREJA ANTIGA, NORMATIVA À PARTICIPAÇÃO DOS FIÉIS, O POVO CRENTE

O que dissemos ser o primeiro e o segundo pontos no chamado dos ministros – quais pessoas escolher e quão grande cuidado se deve aplicar nesse processo –, nisso a Igreja antiga seguiu o que Paulo prescreu e os exemplos dos apóstolos. Pois, para escolher pastores, costumavam reunir-se com suma reverência e invocação solícita do nome de Deus. Além disso, tinham uma fórmula de exame pela qual aferiam a vida e a doutrina dos que deviam ser eleitos, segundo aquela regra de Paulo [1Tm 3.2-7]. Só que aqui pecaram por imoderada severidade, visto que quiseram requerer mais do bispo do que Paulo exigiu, especialmente no seguimento do tempo, o celibato. Nos demais aspectos, contudo, a observância lhes foi consistente com a descrição de Paulo. Não obstante, no que referimos em terceiro lugar, a saber, quem deva constituir os ministros, nem sempre mantiveram uma norma única. Aliás, em tempos antigos ninguém era admitido ao grêmio dos clérigos sem o assentimento de todo o povo, de modo que Cipriano busca diligentemente justificar que constituíram leitor, sem consultar a Igreja, a um certo Aurélio, porque isso foi feito em exceção ao costume, e isso não sem razão plausível. Assim, pois, ele prefacia a questão: “Em ordenando se clérigos, caríssimos irmãos, costumamos consultar-vos e convosco ponderar, em comum entendimento, os costumes e os méritos de cada um.” De fato, porque nesses exercícios menores não se corria grande perigo, porque seriam submetidos a prova diária e não grande função, o assentimento do povo deixou de ser solicitado. Mais tarde, também nos demais ofícios, exceto o episcopado, o povo comumente permitiu ao bispo e presbíteros o critério da escolha, como conhecessem quem era idôneo e digno, a não ser, talvez, quando novos presbíteros eram destinados às paróquias, pois então se fez necessário que a multidão do lugar assentisse expressamente. Nem causa surpresa que ao reter seu direito menos solícito foi o povo nesta parte, pois ninguém se fazia subdiácono que não houvesse dado longa prova de si no clericato, sob essa severidade de disciplina que havia então. Depois que nesse posto fossem provados, era constituído diácono; daí atingia a honra do presbiterato, caso fosse desincumbido fielmente. Assim sendo, nenhum era promovido acerca de quem realmente, por muitos anos, não resistisse ao exame, sob as vistas do povo. E eram muitos os cânones para punir-lhes as faltas, de sorte que a Igreja não era impingida de maus presbíteros ou diáconos, a não ser que negligenciasse os remédios; se bem que no caso dos presbíteros sempre se exigia também o assentimento dos cidadãos, o que o atesta, ademais, o Cânon I, distinção , que se atribui a Anacleto. Finalmente, então todas as ordenações eram feitas em determinados tempos do ano, para que não se insinuasse alguém furtivamente, sem o assentimento dos fiéis, ou fosse promovido com excessiva facilidade, sem testemunhas.

João Calvino

OS CLÉRIGOS, ESTAGIÁRIOS EM PREPARO E ADESTRAMENTO PARA O MINISTÉRIO DA IGREJA: OSTIÁRIOS, ACÓLITOS, LEITORES, SUBDIÁCONOS, EM PROGRESSÃO

Estes que acabamos de enumerar foram os ministérios da Igreja antiga. Os outros, dos quais os escritores eclesiásticos fazem menção, foram mais exercícios e como que preparações do que funções específicas. Ora, aqueles santos varões, para que deixassem após si um viveiro à Igreja, recebiam a seu cuidado e tutela, e também instrução, jovens que, com o consentimento e autoridade do país, se alistavam na milícia espiritual, e assim os formavam desde tenra idade para que não viessem a exercer o ofício despreparados e inexperientes. Todos, porém, que eram instruídos em aprendizados deste molde eram chamados pelo termo geral clérigo. Certamente que eu preferiria que lhes fosse dado outro nome mais próprio, pois este designativo nasceu de um erro, ou certamente de uma noção falsa do que Pedro proclamara como o clero, isto é, a herança do Senhor, a Igreja inteira [1Pe 5.3]. Entretanto, a instituição mesma foi sobremodo santa e salutar, porquanto os que se quisessem consagrar à Igreja a si mesmos e seu serviço, fossem assim educados sob o cuidado do bispo, de sorte que ninguém ministrasse à Igreja a não ser previamente bem preparado e quem desde a primeira adolescência não só houvesse embebido a santa doutrina, mas também, mercê de disciplina mais severa, houvesse se revestido de um certo hábito de gravidade e de vida mais santa; igualmente houvesse sido alheio a cuidados profanos e acostumado aos cuidados e ocupações espirituais. Contudo, da mesma forma que os recrutas do exército são adestrados para combate verdadeiro e sério mediante lutas simuladas, assim havia certos rudimentos com os quais eles eram exercitados no clericato, antes que fossem promovidos às funções propriamente ditas. Portanto, primeiro lhes confiavam o cuidado de abrir e fechar o templo, e os chamavam ostiários; depois os chamavam acólitos, como assistissem ao bispo nos encargos domésticos e o acompanhassem de contínuo, primeiro por uma questão de honorabilidade, então para que alguma suspeita não viesse sorrateiramente; em seguida, para que se fizessem gradualmente conhecidos ao povo e adquirissem recomendação para si; ao mesmo tempo que aprendessem a suportar a presença de todos e a falar diante de todos, para que, feitos presbíteros, quando viessem à frente a ensinar, não se confundissem pelo acanhamento, era-lhes dado lugar à leitura no púlpito. Desse modo eram promovidos gradativamente, de sorte que provassem sua diligência nos exercícios, um a um, até que se tornavam subdiáconos. Só quero dizer o seguinte: estes encargos foram mais rudimentos de noviços que funções que eram computadas entre os verdadeiros ministérios da Igreja.

João Calvino

EM CASOS DE PENÚRIA E INDIGÊNCIA, ERAM VENDIDAS AS PRÓPRIAS VESTIMENTAS ECLESIÁSTICAS PARA SOCORRER-SE AOS NECESSITADOS

Com efeito, o que conferiam ao ornato das coisas sagradas era, a princípio, extremamente exíguo; mais tarde, quando a Igreja veio a ser um pouco mais rica, ainda conservaram moderação nessa matéria. E, todavia, tudo quanto de dinheiro aí se juntava permanecia incólume para os pobres, caso alguma necessidade maior sobreviesse. Assim sendo, Cirilo, como a fome houvesse ocupado a província de Jerusalém, nem se podia de outra maneira acudir à indigência, mercanciou vasos e vestes e gastou o produto na alimentação dos pobres. De igual modo, Acácio, bispo de Amida, quando grande multidão de persas esteve a ponto de perecer de fome, convocando os clérigos e fazendo esta preclara oração: “Nosso Deus não tem necessidade nem de pratos, nem de cálices, porque não come, nem bebe”, fundiu os vasos, de onde conseguisse para os míseros não só o alimento, mas também preço de resgate. Jerônimo também, enquanto investe contra o exagerado esplendor dos templos, faz menção honorífica a Exupério, bispo de Tolosa, de seu tempo, que carregava o corpo do Senhor em um cesto de vime e o sangue em um vidro, mas não permitia que nenhum pobre passasse fome.43 O que há pouco disse a respeito de Acácio, Ambrósio menciona acerca de si mesmo, pois, como os arianos o incomodassem porque, para a redenção de cativos, houvesse quebrado os vasos sagrados, usou desta belíssima justificativa: “Aquele que sem ouro enviou os apóstolos, também sem ouro congregou as igrejas. A Igreja tem ouro, não para que o conserve, mas para que o gaste e venha em socorro das necessidades. Que proveito há em guardar o que nada ajuda? Porventura ignoramos quanto de ouro e de prata os assírios arrebataram do templo do Senhor [2Rs 18.15, 16]? Porventura não os funde melhor o sacerdote com vistas ao sustento dos pobres, se outros recursos faltem, que embora os carregue o inimigo sacrílego? Porventura não haverá de dizer o Senhor: ‘Por que permitiste que morressem de fome tantos necessitados? E por certo que tinhas ouro donde ministrassem o alimento! Por que tantos foram levados cativos, nem foram redimidos? Por que tantos foram mortos pelo inimigo? Melhor fora que preservasses os vasos de vivos que os de metais.’ A estas coisas não poderás dar resposta, pois que haverias de dizer? ‘Temi que faltasse ornamento ao templo de Deus.’ Responderia ele: ‘Os sacramentos não requerem ouro, nem com ouro as coisas agradam que com ouro não se compram. O ornato dos sacramentos é a redenção dos cativos’.” Em suma, vemos ter sido muito verdadeiro o que em outro lugar diz o mesmo Ambrósio: “Tudo quanto então possuísse a Igreja veio a ser pecúlio dos carentes.” De igual modo: “O bispo nada tem que não seja dos pobres.”

João Calvino

OS FUNDOS DA IGREJA, A PRINCÍPIO DE LIVRE APLICAÇÃO, MAIS TARDE SE DESTINARAM A QUATRO FINALIDADES DISTINTAS

No princípio, a administração dos fundos da Igreja foi livre e voluntária, quando os bispos e diáconos de si mesmos fossem fiéis, e no lugar das leis estivessem a integridade de consciência e inocência de vida. Mais tarde, como emergissem da cobiça ou esforços corruptos de uns certos maus exemplos, para corrigir esses vícios foram elaborados cânones que dividiram as rendas da Igreja em quatro partes, das quais destinaram uma aos clérigos; outra, aos pobres da Igreja; a terceira, a manter bem conservados os templos sagrados e outros edifícios; a quarta, porém, tanto a forasteiros quanto a nativos necessitados. Ora, que outros cânones atribuem esta última porção ao bispo, isso nada varia dessa divisão que referi, pois nem pretendem que lhe pertencesse, de sorte que ou ele mesmo a consumisse, ou derramasse à larga a quem bem quisesse; antes, que baste à hospitalidade que Paulo requer dessa ordem de ministros da Igreja [1Tm 3.2]. E assim interpretam Gelásio e Gregório, pois que outra razão não acrescenta Gelásio por que o bispo não reivindique para si alguma coisa, a não ser para prodigalizar aos cativos e aos peregrinos, e ainda mais claramente fala Gregório: “É costume”, diz ele, “da Sé Apostólica, uma vez ordenado o bispo, dar-lhe preceitos, de modo que de todo estipêndio que provém se façam quatro porções, a saber: uma para o bispo e sua casa em função da hospitalidade e assistência, outra para o clero, a terceira para os pobres, a quarta para a reparação dos templos.” Portanto, nada foi permitido ao bispo tomar para seu uso, senão o que fosse suficientemente para moderada e frugal alimentação e vestuário. E se alguém começava a exceder-se, ou pelo luxo, ou pela ostentação e pompa, era imediatamente reprimido pelos colegas; se não obedecesse, era privado da honra episcopal.

João Calvino


sexta-feira, 26 de outubro de 2018

O USO E ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DA IGREJA, VOTADOS PRIMARIAMENTE AO SOCORRO DOS POBRES, E TAMBÉM ATÉ ONDE SE FAZIA NECESSÁRIO O SUSTENTO DOS MINISTROS

Daqui pode-se também ajuizar qual foi o uso dos bens eclesiásticos e em que moldes era sua administração. A cada passo se pode encontrar, tanto nos decretos dos sínodos, quanto nos escritores antigos, que tudo quanto a Igreja possui, seja em propriedade, seja em dinheiro, é patrimônio dos pobres. E assim freqüentemente ali é entoada esta cantilena aos bispos e diáconos: que se lembrem que estão a manejar não valores próprios, mas os destinados à necessidade dos pobres; valores que, se de má fé são suprimidos ou dilapidados, se constituem réus de sangue. Daí serem admoestados a que, com sumo tremor e reverência, como à vista de Deus, os distribuam, sem acepção de pessoas, àqueles a quem se devem. Daqui também aquelas sérias reiterações em Crisóstomo, Ambrósio, Agostinho e outros bispos como eles com as quais diante do povo asseveram sua integridade. Como, porém, seja justo, e também sancionado pela lei do Senhor, que aqueles que dedicam sua atividade à Igreja sejam sustentados às expensas públicas da Igreja [1Co 9.14; Gl 6.6], e nesse tempo alguns presbíteros, consagrando a Deus seus patrimônios, se fizeram pobres voluntários, tal era a distribuição que nem aos ministros faltasse o sustento nem negligenciados fossem os pobres. Entrementes, tomava-se cautela, no entanto, para que os próprios ministros, que devem dar aos outros exemplo de frugalidade, não tivessem em demasia de onde usassem mal para luxo ou prazeres; antes, tivessem apenas com que fizessem frente à sua necessidade. “Ora, os clérigos que podem ser sustentados pelos bens dos pais”, diz Jerônimo, “se recebem o que é dos pobres, cometem sacrilégio e, por abuso desta natureza, comem e bebem juízo para si” [1Co 11.29].

João Calvino

O OFÍCIO DIACONAL, SUA EXPRESSÃO, GRADAÇÃO E PERPETUIDADE

A condição dos diáconos, então, não foi outra além daquela dos dias dos apóstolos. Pois recebiam dos fiéis as ofertas diárias e os proventos anuais da Igreja, para que os aplicassem a seus verdadeiros usos, isto é, os distribuíssem para alimentar em parte os ministros, em parte os pobres; contudo, sob o arbítrio do bispo, a quem, ademais, prestavam anualmente contas de sua economia. Ora, que por toda parte os cânones fazem o bispo o administrador de todos os bens da igreja, não se deve assim entender como se ele próprio houvesse de desempenhar pessoalmente essa obrigação; antes, que sua atribuição era prescrever a um diácono quem deveria ser recebido à pensão pública da igreja e a quem, e quanto, devesse ser fornecido a cada um daquilo que era restante, e que tinha a inspeção de ver se este executaria fielmente o que seria de seu ofício. Pois assim se lê nos cânones que atribuem aos apóstolos: “Preceituamos que o bispo tenha em seu poder as coisas da Igreja. Ora, se lhe foram confiadas as almas dos homens, mais preciosas, muito mais cabível é que exerça ele o cuidado dos fundos, para que, de seu poder, todas as coisas sejam dispensadas aos pobres por intermédio dos presbíteros e diáconos, de modo que se ministre com temor e toda solicitude.” E no Concílio de Antioquia foi decretado que fossem freados os bispos que tratavam das coisas da Igreja sem o conhecimento dos presbíteros e dos diáconos. Mas, não há por que discutir-se mais longamente acerca disto, quando se manifesta de numerosas epístolas de Gregório que também nesse tempo, quando, de outra sorte, as ordenanças eclesiásticas haviam sido muito deturpadas, no entanto esta observância havia perdurado: que os diáconos, debaixo da autoridade do bispo, fossem os ecônomos dos pobres. É verossímil que, de início, aos diáconos fossem atribuídos subdiáconos, para que do serviço deles se utilizassem em relação aos pobres; mas essa distinção foi aos poucos obliterada. Contudo, começaram a criar-se então arcediago, quando a abundância de recursos exigiria nova e mais exata maneira de administrar, se bem que Jerônimo registra que eles já existiam em sua época. Mas, nas mãos destes estava a soma das rendas, das posses, das alfaias e o encargo das ofertas diárias. Daí Gregório declarar que o arcediago de Salona incorreria em culpa se algo dos bens da Igreja se perdesse, quer por negligência, quer por fraudulência dele. Mas o fato de que se lhes havia confiado a leitura do evangelho ao povo e a exortação a orar, que igualmente eram incumbidos de estender o cálice na santa ceia, isto acontecia no propósito de adornar o ofício, para que o executassem com reverência maior, quando fossem advertidos de tais apanágios de que, o que estivessem a desempenhar, não era alguma gerenciação profana, mas antes uma função espiritual e devotada a Deus.

João Calvino

ARCEBISPOS E PATRIARCAS

Equanto em cada província tinha um arcebispo entre os bispos, os quais, de igual modo, no Concílio de Nicéia foram constituídos patriarcas, que fossem superiores aos arcebispos em ordem e dignidade, isso dizia respeito à preservação da disciplina, se bem que nesta discussão não se pode passar em silêncio que isso era de uso mui raro. Portanto, por esta causa, mais do que tudo, foram instituídos estes graus para que, se algo em qualquer igreja ocorresse que não pudesse ser bem dirimido por uns poucos, fosse referido ao sínodo provincial. Se a magnitude ou dificuldade da causa também exigisse discussão maior, eram convocados os patriarcas juntamente com os sínodos, dos quais não haveria apelo, senão a um concílio geral. Ao governo assim constituído alguns chamaram hierarquia, com um termo, segundo me parece, impróprio, certamente não usado nas Escrituras. Ora, o Espírito Santo quis prevenir que alguém sonhasse principado ou senhorio, quando se trata do governo da Igreja. Se, porém, o termo for omitido, olhemos para o próprio fato e acharemos que os bispos antigos não quiseram plasmar outra forma de governar-se a Igreja fora daquela que Deus prescreveu em sua Palavra.

João Calvino

A AMBOS, BISPOS E PRESBÍTEROS, O OFÍCIO NECESSÁRIO ERAM A PREGAÇÃO DA PALAVRA E A ADMINISTRAÇÃO DOS SACRAMENTOS

Quanto, porém, diz respeito ao ofício de que estamos agora a tratar, tanto ao bispo, quanto aos presbíteros, tinham que devotar-se à ministração da Palavra e dos Sacramentos. Ora, somente em Alexandria, porquanto Ário havia aí conturbado a Igreja, fora resolvido que o presbítero não pregasse ao povo, como diz Sócrates, no livro IX da História Tripartite [de Cassiodoro]. No entanto, Jerônimo não dissimula que isso lhe desagradava.34 Certamente seria coisa monstruosa que alguém se vangloriasse de ser bispo e não cumprisse com as obrigações de seu cargo. Portanto, tal foi a severidade daqueles tempos, que todos os ministros se sentiam compelidos a cumprir o ofício como o Senhor requeria deles. Não estou me referindo somente ao costume de uma única época, porque, na verdade, nem no tempo de Gregório, quando a Igreja já quase entrara em colapso (certamente se degenerara muito da antiga pureza), não foi tolerável que algum bispo se abstivesse das pregações. “O sacerdote”, diz ele, em algum lugar,35 “morre, se dele não se ouvir algum som, porque reclama contra si a ira do Juiz oculto, se vagueia sem o soar da pregação.” E, em outro lugar: “Quando Paulo testifica [At 20.26] estar limpo do sangue de todos, nesta afirmação somos indiciados, somos constringidos, somos evidenciados como réus, nós que somos chamados sacerdotes, que sobre essas coisas más que pessoalmente as temos acrescentamos também mortes alheias, porque matamos aos mornos e silenciosos, quando os vemos avançando diariamente para a morte.” Chama silencioso a si próprio e aos outros por serem menos diligentes na obra do que conviria. Aliás, quando não perdoa a esses que exerciam o ofício pela metade, que pensas deveria ele fazer, se alguém tivesse deixado totalmente de fazê-lo? Portanto, isso prevaleceu na Igreja por tanto tempo, que as funções primárias do bispo vieram a ser a nutrição do povo com a Palavra de Deus, ou, seja, edificar a Igreja pública e particularmente com sã doutrina.

João Calvino

A DIGNIDADE E A FUNÇÃO DO BISPO

Aqueles, pois, a quem se impusera o ofício docente, a todos esses chamavam presbíteros. Esses presbíteros elegiam de seu número um em cada cidade a quem davam, especialmente, o título de bispo, para que da igualdade não nascesse dissidência, como costuma acontecer. Contudo, o bisto não era superior em honra e dignidade num grau tal que tivesse domínio entre os colegas, mas as funções que tem o cônsul no Senado, o qual reporta quanto aos negócios, solicita os pareceres, preside aos outros em aconselho, admoestação, exortação, por sua autoridade rege a toda ação e executa o que foi decretado por decisão comum, função essa que o bispo mantinha na assembléia dos presbíteros. Os próprios antigos confessam que isso mesmo fora introduzido por consenso humano diante da necessidade dos tempos. Assim Jerônimo, em relação à Epístola a Tito: “O mesmo”, diz ele, “o mesmo é o presbítero que o bispo. E antes que, por instigação do Diabo, ocorressem dissidência na religião, e entre as pessoas se dissesse: ‘Eu sou de Paulo, eu de Cefas’ [1Co 1.12], as igrejas eram governadas pelo conselho comum dos presbíteros. Posteriormente, para que extirpassem as sementes de dissenções, toda a solicitude foi deferida a um só. Portanto, assim como os presbíteros sabem que, segundo o costume da Igreja, estão sujeitos àquele que preside, assim também saibam os bispos que são superiores aos presbíteros mais pelo costume que pela verdade da disposição do Senhor, e devem reger a Igreja em comum com eles.” Em outro lugar, contudo, o mesmo Jerônimo ensina quão antigo foi este instituto. Pois ele diz que em Alexandria, desde o evangelista Marcos até Héraclas e Dionísio, os presbíteros sempre colocaram em um grau mais elevado um eleito dentre si, a quem chamavam bispo. Portanto, as cidades, uma a uma, tinham seu colégio de presbíteros, que eram pastores e mestres. Ora, nem todos exerciam entre o povo o ofício de ensinar, de exortar e de corrigir, o qual Paulo impõe aos bispos [Tt 1.9]; mas também, para que deixassem semente após si, empenhavam-se diligentemente em instruir aos mais jovens que se haviam alistado na sagrada milícia. A cada cidade era atribuída certa região, a qual daí recebesse seus presbíteros e fosse como que integrada ao corpo dessa igreja. Os colégios presbiteriais, cada um deles, como disse, meramente no interesse de conservar-se uma boa gestão e a paz, estavam sob a direção de um bispo, o qual aos outros de tal modo precedia em dignidade, que estivesse sujeito à assembléia dos irmãos. Se, porém, o campo que lhe estava sob o episcopado era amplo demais para que pudesse cumprir por toda parte a todos os deveres de bispo, designavam-se presbíteros para certos lugares através do próprio campo, que lhe
fizessem as vezes em questões de importância menor. A esses chamavam bispos regionais, porque representavam o bispo geral através da próprio província.

João Calvino

DO ESTADO DA IGREJA ANTIGA E DA FORMA DE GOVERNO QUE ESTEVE EM USO ANTES DO PAPADO

A FORMA DE GOVERNO DA IGREJA PRIMITIVA E AS ORDENS MINISTERIAIS NELA EXISTENTES

Até aqui discorremos acerca da ordem de governo da Igreja como nos foi ensinada da pura Palavra de Deus e dos ministérios segundo foram instituídos por Cristo. Agora, para que todas estas coisas se nos façåm mais clara e familiarmente manifestas, também se nos fixem melhor nas almas, será útil reconhecer a forma da Igreja antiga nessas coisas, que aos olhos nos haja de representar uma como que imagem da divina instituição. Pois ainda que os bispos daqueles tempos promulgassem muitos cânones nos quais parecessem exprimir mais do que havia sido expresso nas Sagradas Letras, contudo com esta cautela conformaram toda sua economia àquela norma única da Palavra de Deus, de tal modo que se pode ver facilmente que não ordenaram nada contrário àquela. No entanto, se ainda algo se possa desejar em suas regulamentações, todavia, porque tentaram com sincero esforço conservar a instituição de Deus, e dela não se apartaram muito, aqui será de muita vantagem coligir sucintamente a ordem que seguiram para levá-la à prática. Como já ensinamos que na Escritura se recomenda tríplice ministério, assim tudo quanto a Igreja antiga teve de ministros os distinguiu em três ordens. Ora, da ordem dos presbíteros, uma parte era eleita pastores e mestres; a parte restante presidia à censura dos costumes e às correções. Aos diácono fora confiado o cuidado dos pobres e a administração das esmolas. Leitores, porém, e acólitos não eram nomes de determinados ofícios, mas aqueles a quem chamavam clérigos, a esses desde a adolescência costumavam servir à Igreja mediante certos exercícios, para que melhor compreendessem a que fim foram destinados, e em tempo chegassem ao ofício mais preparados, como logo a seguir mostrarei mais amplamente. Assim sendo, Jerônimo, onde à Igreja prescreveu cinco ordens, enumera bispos, presbíteros, diáconos, fiéis, catecúmenos; ao clero restante, e aos monges, não atribuiu nenhum lugar próprio.

João Calvino

O RITO DE ORDENAÇÃO MINISTERIAL ENFEIXADO NA CERIMÔNIA DE IMPOSIÇÃO DE MÃOS

Resta, ainda, o rito de ordenação, ao qual demos o último lugar na consideração da vocação. Contudo é manifesto que os apóstolos não se serviram de outra cerimônia, quando admitiam alguém ao ministério, além da imposição de mãos. Contudo julgo que este rito é oriundo do costume dos hebreus que, pela imposição de mãos, era como se apresentassem a Deus aquilo que queriam que fosse abençoado e consagrado. Assim Jacó, estando para abençoar a Efraim e a Manassés, impôs as mãos sobre as cabeças deles [Gn 48.14]. Isto seguiu nosso Senhor ao fazer sua oração em favor das crianças [Mt 19.13-15]. Com o mesmo significado, segundo o vejo, os judeus impunham as mãos sobre seus sacrifícios, conforme o prescrito pela lei [Lv 1.4; Nm 8.12, e muitas outras passagens nesses dois livros]. Daí, pela imposição de mãos os apóstolos significavam que estavam oferecendo a Deus aquele a quem iniciavam no ministério, se bem que a usaram também sobre aqueles a quem conferiam as graças visíveis do Espírito [At 19.6]. Seja como for, este foi o rito solene sempre que chamavam alguém para o ministério eclesiástico. Assim como consagravam os pastores e os mestres, também os diáconos. Mas, embora nenhum preceito expresso subsista quanto à imposição de mãos, uma vez que, no entanto, a vemos vigorar em uso perpétuo pelos apóstolos, essa sua observância tão acurada deve valer-nos por preceito. E certamente é útil como símbolo desta natureza, tanto para recomendar ao povo a dignidade do ministério, quanto para advertir aquele que é ordenado, de que já não é de seu direito, mas antes é dedicado em servidão a Deus e à Igreja. Isto posto, não será um sinal sem sentido, se for restaurado a sua origem genuína. Ora, se o Espírito de Deus nada institui na Igreja em vão, haveremos de sentir, quando ela for provida por ele, que esta cerimônia não é inútil, desde que não se converta a abuso supersticioso. Finalmente, isto há de ter-se em conta: que nem toda a multidão impunha as mãos sobre seus ministros, mas somente os pastores, embora seja incerto se eram ou não sempre muitos os que impunham as mãos. Claramente se vê que se procedeu assim no caso dos diáconos29 [At 6.6], de Paulo e Barnabé [At 13.2, 3] e de alguns outros poucos. Mas o próprio Paulo, em outro lugar [2Tm 1.6], rememora que ele, não muitos outros, impôs as mãos sobre Timóteo: “Relembro-te”, diz ele, “que reanimes a graça que em ti há pela imposição de minhas mãos.” Pois o que se diz na outra Epístola acerca da imposição de mãos do presbitério [1Tm 4.14], não aceito como se Paulo esteja falando do colégio de presbíteros, mas antes com este termo entendo a própria ordenação, como se estivesse dizendo: “Faz com que a graça que recebeste por imposição de mãos, ao constituir-te presbítero, não seja infrutífera.”

João Calvino

A ELEIÇÃO OU ESCOLHA DOS MINISTROS DEVE SER POR SEUS PARES, ASSISTIDOS DOS PRESBÍTEROS OU ANCIÃOS, COM APROVAÇÃO DIRETA DA IGREJA OU ASSEMBLÉIA DOS FIÉIS

Agora indaga-se se porventura o ministro deva ser eleito por toda a Igreja, ou apenas pelos colegas e os presbíteros que presidem à censura, ou porventura de fato possa ser constituído pela autoridade de um só. Aqueles que atribuem este direito a um só homem citam o que Paulo diz a Tito [1.5]: “Por isso te deixei em Creta, para que constituas presbíteros de cidade em cidade.” Igualmente, a Timóteo: ”A ninguém imponhas as mãos precipitadamente” [1Tm 5.22]. Mas estão enganados se pensam que, ou Timóteo em Éfeso, ou Tito em Creta, exercera poder régio, de modo que dispusesse de tudo e de todos a seu bel-prazer. Ora, estiveram à frente apenas para que assistissem ao povo com bons e salutares conselhos, não para que sozinhos, excluídos todos os demais, fizessem o que bem lhes aprouvesse. E para que não pareça que estou a imaginar algo, farei isso evidente com um exemplo semelhante. Pois Lucas [At 14.23] relata que foram constituídos, por Paulo e Barnabé, presbíteros nas igrejas, porém assinala, ao mesmo tempo, a maneira ou modo, quando diz que isso foi feito por sofrágio ceirotonh,santej [cheir(t(n@sant$s – havendo eles estendido a mão para votar], diz ele, presbute,rouj katV evkklhsi,a/n [pr$sbyt$rous kat'$kk@sí*n – presbíteros em cada igreja]. Logo, eles dois os “criavam”, mas toda a multidão, como era o costume dos gregos nas eleições, com as mãos levantadas declarava qual desejasse ter. Aliás, assim não raro falavam os hitoriadores romanos ter o cônsul que promovia a assembléia “criado” os novos magistrados, não por outra causa, mas porque recebia os sufrágios e servia de moderador do povo no processo de eleição. Certamente não é crível que Paulo haja concedido a Timóteo e Tito mais do que ele próprio assumira para si. Mas descobrimos que ele costumava “criar” bispos pelos sufrágios do povo. Portanto, assim se deve entender as passagens supracitadas que não diminíam algo do direito e liberdade comuns da Igreja. Por isso Cipriano setenciou bem, quando afirma provir de divina autoridade que o sacerdote seja escolhido, presente o povo, sob os olhos de todos e seja comprovado digno e idôneo pelo testemunho e critério público. Com efeito, descobrimos que isto foi observado, por mandado do Senhor, nos sacerdotes levíticos, de sorte que fossem trazidos à presença do povo antes da consagração [Lv 8.4-6; Nm 20.26, 27]. Matias não é admitido de outra maneira no colégio dos apóstolos [At 1.15; 21-26], nem de outro modo são criados os sete diáconos [At 6.2-7], senão que o povo estava presente e aprovando. “Esses exemplos”, diz Cipriano, “mostram que a ordenação de um sacerdote só se pode fazer sob o conhecimento do povo a assisti-la, para que seja uma ordenação justa e legítima, que seja consignada pelo testemunho de todos.”28 Portanto, vemos que, segundo a Palavra de Deus, este é o legítimo chamado de um ministro, quando aqueles que são vistos como idôneos sejam constiuídos com o consenso e aprovação do povo; mas a eleição deve ser presidida por outros pastores, para que a multidão não incorra em alguma falta, quer por leviandade, quer por maus desígnios, quer por distúrbios da ordem.

João Calvino

A VOCAÇÃO DIVINA NÃO IMPEDE NEM EXCLUI A DESIGNAÇÃO OU ESCOLHA POR PARTE DA IGREJA

Mas que seja preciso, na vocação legítima dos pastores, ser eleitos pelos homens, ninguém sobriamente negará, quando nesta matéria subsistem tantos testemunhos da Escritura. Tampouco a isso se contrapõe esta afirmação de Paulo, como foi dito, de que “eu fui enviado não por homens, nem através de homens” [Gl 1.1], quando aí não está falando a respeito da eleição ordinária de ministros, mas reivindicando para si o que era especial para os apóstolos. Não obstante, ainda que ele mesmo fosse eleito pelo Senhor, mas sua eleição foi de tal maneira que interveio a ordem eclesiástica, pois Lucas assim o relata: “Estando os apóstolos a jejuar e a orar, o Espírito Santo lhes disse: ‘Separai-me Paulo e Barnabé para a obra para a qual os escolhi’” [At 13.2]. A que propósito, pois, esta separação e imposição de mãos, depois que o Espírito Santo atestara sua eleição, senão para que fosse conservada a disciplina eclesiástica, sendo eles os ministros designados através dos homens? Portanto, de nenhum exemplo mais claro Deus pôde aprovar disposição desta natureza que, enquanto declarara antes haver destinado Paulo para ser Apóstolo aos gentios, no entanto quer que ele seja designado pela Igreja. Isso mesmo se pode perceber na escolha de Matias [At 1.23-26]. Ora, visto o ofício apostólico ser de tão grande importância, que não ousassem escolher um só homem para esse posto, por seu próprio critério, apresentam dois, dos quais esperam que a sorte caia sobre um, para que assim também a escolha tenha reconhecido testemunho do céu, e tampouco seja inteiramente preterida a sistemática da Igreja.

João Calvino

A VOCAÇÃO OU INDICAÇÃO DOS MINISTROS É FUNÇÃO DE DEUS, NÃO PROPRIAMENTE DOS HOMENS

O terceiro item que incluímos em nossa divisão era por quem os ministros devem ser eleitos. Mas, desta matéria não se pode buscar regra segura na instituição dos apóstolos, a qual contém algo distinto da vocação comum dos demais. Ora, visto que ele era um ministério extraordinário, para que se fizesse distinto por alguma nota mais insigne, foi necessário que fossem chamados e constituídos pela boca do próprio Senhor aqueles que o haveriam de desempenhar. Portanto, não foram investidos por nenhuma eleição humana, mas foram cingidos para a obra tão-somente pelo mandado de Deus e de Cristo. Daqui procede que os apóstolos, quando querem colocar um outro no lugar de Judas, de certo modo não ousam nomear um único homem, mas apresentam dois, para que o Senhor declare por sorte qual desses dois queira que seja o sucessor [At 1.23-26]. Também nessa maneira convém interpretar o fato de Paulo negar “haver sido feito Apóstolo por homens ou através de um homem, mas por Cristo e Deus Pai” [Gl 1.1]. Esse primeiro ponto, isto é, não ter sido feito Apóstolo por homens, considerouse comum com todos os pios ministros da Palavra, pois alguém não podia exercer devidamente esta ministração senão aquele que fosse chamado por Deus. O segundo ponto, porém, isto é, não ter sido designado através de homem, foi-lhe próprio e peculiar. Portanto, enquanto se gloria disto, o Apóstolo não está apenas se gloriando de ter o que convém ao verdadeiro e legítimo pastor, mas também exibindo as insígnias de seu apostolado. Pois, como houvesse entre os gálatas aqueles que, esforçando-se por denegrir-lhe a autoridade, fizessem dele um discípulo comum, sujeito aos apóstolos primários, para que vindicasse dignidade incólume à sua pregação, contra a qual sabia que estas insídias eram intentadas, se viu obrigado, em todo respeito, mostrar que em nada era inferior aos demais apóstolos. Conseqüentemente, afirma que fora escolhido não pelo critério de homens, à semelhança de um bispo vulgar, mas por boca e oráculo manifesto do próprio Senhor.

João Calvino

QUE PESSOAS DEVEM SER ADMITIDAS AO MINISTÉRIO E OFICIALATO DA IGREJA E COMO FAZÊ-LO

 homens devem ser eleitos bispos. Em suma, ele ensina que só devem ser eleitos os que professam a sã doutrina e vivem vida santa, que não foram manchados por nenhum vício notório que os faça desprezíveis e seja causa de afronta para o ministério. Quanto aos diáconos e anciãos, a qualificação é inteiramente semelhante [1Tm 3.8-13]. É preciso sempre ver que não sejam incapazes ou inaptos para suster o ônus que lhes é imposto, isto é, que hajam sido dotados dessas capacidades que serão necessárias para o cumprimento de seu ofício. Assim Cristo, quando estava para enviar os apóstolos, adornou-os com as armas e instrumentos de que não podiam prescindir [Mc 16.15-18; Lc 21.15; 24.49; At 1.8]. E Paulo, pintando a imagem do bom e verdadeiro bispo, exorta a Timóteo a que não se contaminasse a si mesmo, elegendo alguém estranho a ela [1Tm 5.22]. Aplico a partícula como não ao rito de eleger, mas ao temor religioso que se deve observar na eleição. Daqui, os jejuns e orações de que Lucas faz menção, e que os fiéis fizeram uso quando criavam presbíteros [At 14.23]. Ora, como compreendessem que estavam fazendo coisa da maior seriedade, nada ousavam tentar sem extrema reverência e solicitude. Mais do que tudo, porém, se aplicaram às orações, nas quais a Deus rogavam o Espírito de conselho e discernimento.

João Calvino

DUPLA VOCAÇÃO MINISTERIAL: INTERIOR E EXTERIOR

A consideração desta matéria aborda quatro itens: que saibamos quais, como e por quem os ministros devem ser investidos e com que rito ou com que cerimônia devem ser instalados. Estou falando da vocação exterior e solene, que diz respeito à ordem público da Igreja. Contudo deixo fora de consideração aquela vocação que não tem a Igreja por testemunha. De fato ela é o bom testemunho de nosso coração, de que recebamos o ofício outorgado não por ambição, nem por avareza, nem por qualquer outra cobiça, mas por sincero temor de Deus e zelo pela edificação da Igreja. Certamente que isto é necessário a cada um de nós, como eu já disse, se queremos que Deus aprove nosso ministério. No entanto, perante a Igreja, não obstante, foi chamado devidamente aquele que atendeu a esse ministério em má consciência, contanto que sua iniqüidade não se manifeste. Costumam também dizer que foram chamadas para o ministério mesmo pessoas leigas que se revelam aptas e idôneas para exercê-lo, visto que, na verdade, a erudição associada à piedade e aos demais dotes do bom pastor lhe sejam uma como que preparação. Ora, aqueles que o Senhor destinou a tão grande ofício os equipa antes com essas armas que são requeridas para desempenhá-lo, de sorte que não venham a ele vazios e despreparados. Do quê também Paulo, na Primeira Epístola aos Coríntios, como quisesse discutir acerca dos próprios ofícios, enumerou antes os dons em que devem exceler os que desempenhem os ofícios [1Co 12.7-11]. Mas, uma vez que este é o primeiro dos quatro tópicos que acima propus, avançamos para ele agora.

João Calvino

NOS OFÍCIOS ECLESIÁSTICOS, O ELEMENTO PRIMÁRIO É A VOCAÇÃO DIVINA

Agora, pois, quando em uma assembléia sagrada tudo deva ser feito “ em ordem e com decência” [1Co 14.40], não há nada que importe observar com mais diligência do que o estabelecimento do governo, porquanto em coisa alguma o perigo é maior do que quando algo é feito sem a devida ordem. Assim sendo, para que não se introduzissem temerariamente homens inquietos e turbulentos a ensinar ou a governar, o que de outra sorte haveria de acontecer, tomou-se precaução expressamente a que alguém não assuma para si ofício público na Igreja sem a devida vocação. Portanto, para que alguém seja considerado verdadeiro ministro da Igreja, primeiro importa que tenha sido devidamente chamado [Hb 5.4]; então, que responda ao chamado, isto é, empreenda e desempenhe as funções a si conferidas. Isto é possível notar freqüentemente em Paulo, o qual, quando quer provar seu apostolado, quase sempre menciona sua vocação juntamente com sua fidelidade em executar seu ofício. Se um tão grande ministro de Cristo não ousa arrogar para si autoridade para ser ouvido na Igreja, senão porque não só foi nisso constituído por mandado do Senhor, mas também leva fielmente a bom termo o que lhe foi confiado, quão grande impudência será, se qualquer dos mortais, destituído de uma ou outra destas duas credenciais, reivindique para si uma honra desta natureza! Mas, uma vez que já abordamos supra a necessidade de desempenhar o ofício, tratemos agora somente da vocação.

João Calvino

O CUIDADO DOS POBRES É OFÍCIO DOS DIÁCONOS, DOS QUAIS HAVIA DUAS CLASSES NA IGREJA PRIMITIVA

O cuidado dos pobres foi confiado aos diáconos. Todavia, na Epístola aos Romanos lhes são atribuídas duas modalidades: “Aquele que distribui”, diz Paulo aí, “faça-o com simplicidade; aquele que exerce misericórdia, com alegria” [Rm 12.8]. Uma vez que certamente ele está falando dos ofícios públicos da Igreja, necessariamente houve dois graus distintos de diáconos. A não ser que me engane o juízo, no primeiro membro da cláusula ele designa os diáconos que administravam as esmolas; no segundo, porém, aqueles que se dedicaram a cuidar dos pobres e dos enfermos, como, por exemplo, as viúvas das quais faz menção a Timóteo [1Tm 5.9, 10]. Pois nenhum outro ofício público podiam as mulheres desempenhar além do serviço aos pobres. Se recebemos isto (como tem de ser absolutamente recebido), duas serão as modalidades de diáconos, dos quais uns servirão à Igreja na administração das coisas relativas aos pobres; outros, cuidando dos próprios pobres. Mas, ainda que o próprio termo diakoni,a/[diak(ní*] tenha sentido mais amplo, contudo a Escritura denomina especialmente diáconos aos que são constituídos pela Igreja para distribuir esmolas e cuidar dos pobres, como seus procuradores. A origem, a instituição e o cargo dos diáconos o menciona Lucas nos Atos dos Apóstolos [6.3]. Ora, como fosse excitado pelos gregos o murmúrio de que no ministério dos pobres as viúvas estavam sendo negligenciadas, os apóstolos, justificando que não poderiam atender a ambos os ofícios, solicitam da multidão que fossem escolhidos sete homens probos que atendessem não só à pregação da Palavra, mas também ao ministério das mesas, aos quais confiassem essa função. Aqui está a missão dos diáconos nos dias dos apóstolos, e como devemos tê-los conforme o exemplo da Igreja primitiva.

João Calvino

TÍTULOS E FUNÇÃO DO MINISTRO DA PALAVRA EM DISTINÇÃO DE OUTROS CARGOS OU OFÍCIOS NA IGREJA

 e ministros, àqueles que regem as igrejas, eu o fiz pelo uso da Escritura, que emprega estes vocábulos um pelos outros, pois todos quantos desempenham o ministério da Palavra, a esses lhes atribui o título de bispos. Assim, em Paulo, quando a Tito se ordenou constituir presbíteros de cidade em cidade [Tt 1.5], acrescenta-se logo em seguida: “Ora, importa que o bispo seja irrepreensível” etc. [Tt 1.7]. Assim, em outro lugar [Fp 1.1], Paulo saúda a muitos bispos em uma só igreja. E em Atos se refere que o Apóstolo convocara os presbíteros efésios [20.17], aos quais em sua oração ele chama bispos [20.28]. Aqui é hora de observar-se que até este ponto enumeramos somente esses ofícios que consistem no ministério da Palavra, tampouco Paulo faz menção de outros naquele capítulo quarto da Epístola aos Efésios que já mencionamos. Na Epístola aos Romanos [12.7, 8], e na Primeira aos Coríntios [12.28], porém, ele enumera outros, como potestades, dom de curas, interpretação, governo, cuidado dos pobres, dos quais deixo de considerar os que foram temporários, porquanto não vale a pena deter-nos neles. Mas há dois que permanecem perpetuamente: governo e cuidado dos pobres. Penso que governo foram pessoas mais idosas escolhidas dentre o povo, as quais, juntamente com os bispos, presidiam à censura dos costumes e à disciplina a ser exercida. Pois, tampouco podes interpretar de outro modo o que ele diz: “Quem preside, faça-o com diligência” [Rm 12.8]. Logo, desde o início cada igreja teve seu senado, recrutado dentre homens piedosos, sérios e santos, de mãos com o qual estava aquela jurisdição em corrigir vícios de que falaremos mais adiante. Com efeito, que ordem desta natureza não foi de um século o declara a própria experência. Portanto, também este ofício governamental é necessário em todos os séculos.

João Calvino

CADA PASTOR DEVE ATUAR ESPECIFICAMENTE NA ÁREA OU IGREJA PARA A QUAL FOI DESIGNADO

Mas, ainda que a cada pastor, um a um, atribuamos sua própria igreja, contudo não negamos que possa ajudar a outras igrejas aquele que foi ligado a uma, quer algum distúrbio haja ocorrido que lhe requeira a presença, ou que, acerca de alguma coisa mais obscura, se peça dele conselho. Mas, visto que para manter a paz da Igreja, se faz necessária esta política – que a cada um se proponha o que deve fazer, de modo que não tumultuem todos a um tempo, não corram, incertos, para cá e para lá, sem algo definido, nem corram todos a um só lugar desordenadamente, e a seu bel-prazer não deixem vagas as igrejas os que estão solícitos por seu conforto mais do que pela edificação da Igreja –, esta distribuição deve ser geralmente observada, até onde possível, de sorte que cada um, contente com seus limites, não se intrometa nem usurpe a posição alheia. Nem é isso uma invenção humana; antes, é uma instituição do próprio Deus. Pois lemos que Paulo e Barnabé instalaram presbíteros nas igrejas individuais da cidade de Listra, de Antioquia, de Icônio [At 14.21-23]; e Paulo mesmo ordena a Tito que constitua presbíteros de cidade em cidade [Tt 1.5]. Assim, em um lugar [Fp 1.1] menciona os bispos dos filipenses e em outro cita [Cl 4.17] Arquipo, bispo dos colossenses. E Lucas se refere ao excelente discurso dirigido aos presbíteros da igreja efésia [At 20.17-35]. Portanto, quem quer que haja assumido o governo e cuidado de uma igreja saiba que foi atado a esta lei da divina vocação; não que, como se “atado à gleba”, como dizem os jurisconsultos, isto é, sujeito e como que preso, sem poder daí arredar pé, quando assim o requeira o benefício público, desde que isso se faça retamente e em ordem. Mas, aquele que foi chamado para um lugar ele mesmo não deve cogitar de mudança, nem segundo haja julgado ser vantajoso a si, buscar daí liberação. Então, se a alguém pareça conveniente ser transferido para outro lugar, contudo não deve tentar isto por decisão pessoal, mas aguardar a aprovação pública.

João Calvino

AS FUNÇÕES QUE SE ATRIBUEM AOS PASTORES SÃO AS MESMAS ATRIBUÍDAS AOS APÓSTOLOS E DEVEM SER DESEMPENHADAS COM ZELO IDÊNTICO

O Senhor, quando estava enviando os apóstolos, deu-lhes, como foi dito a pouco, a comissão de pregar o evangelho e de batizar os que cressem, para a remissão de seus pecados [Mt 28.19]. Antes disso, porém, mandara ele que distribuíssem, a seu exemplo, os sagrados símbolos de seu corpo e sangue [Lc 22.19]. Eis a santa, a inviolável, a perpétua lei imposta àqueles que sucedem ao lugar dos apóstolos, pela qual recebem o mandado da pregação do evangelho e da administração dos sacramentos. Do quê concluímos que aqueles que negligenciam a uma e outra dessas duas funções pretextam falsamente o papel de apóstolos. Mas, o que dizer dos pastores? Paulo fala não apenas em relação a si próprio, mas de todos eles, quando diz: “Assim nos considere o homem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus” [1Co 4.1]. Igualmente, em otro lugar: “Importa que o bispo seja pertinaz nessa palavra fiel que é segundo a doutrina, para que seja poderoso para exortar mediante a sã doutrina e para refutar os contradizentes” [Tt. 1.7, 9]. Destas e de passagens afins, que ocorrem a cada passo, é possível inferir que também na função dos pastores estas são as duas partes primordiais: anunciar o evangelho e administrar os sacramentos. Mas, a maneira de ensinar consiste apenas não em discursos públicos, mas diz respeito também a admoestações particulares. Assim sendo, Paulo cita os efésios como suas testemunhas de que daquelas coisas que lhes eram do interesse a nada se esquivou que lhes anunciasse e os ensinasse publicamente e de casa em casa testificando a judeus, ao mesmo tempo que a gregos, o arrependimento e a fé em Cristo [At 20.20, 21]. Igualmente, pouco depois diz que não cessou de, com lágrimas, admoestar a cada um deles [At 20.31]. Contudo, não pertence ao presente desígnio expor minuciosamente os dotes do bom pastor, um a um, mas apenas indicar o que professam os que se chamam pastores, isto é, presidirem à Igreja de tal maneira que não têm uma dignidade ociosa, antes que, com a doutrina de Cristo, instruem o povo à verdadeira piedade, administram os sagrados mistérios, conservam o exercício da reta disciplina. Pois todos quantos foram postos por atalaias na Igreja, o Senhor lhes anuncia que, se alguém pereça por ignorância, em razão de negligência deles, ele requererá de suas mãos seu sangue [Ez 3.17, 18]. Também a todos eles compete o que de si diz Paulo: “Ai de mim se não pregar o evangelho, quando uma dispensação me foi confiada [1Co 9.16, 17]. Enfim, o que os apóstolos fizeram para o mundo inteiro, isso cada pastor deve a seu rebanho, ao qual foi designado.

João Calvino

RELAÇÃO ENTRE MESTRES E PROFETAS, E ENTRE PASTORES E APÓSTOLOS

Temos assim quais os ministérios que foram temporários no governo da Igreja, e quais foram instituídos para durarem perpetuamente. Ora, se agruparmos os evangelistas com os apóstolos, de certo modo nos restarão dois pares que correspondem entre si. Pois, a semelhança que nossos mestres têm com os antigos profetas, os apóstolos a têm com os pastores. O ofício profético foi mais eminente em razão do dom singular de revelação pelo qual os profetas exceliam, mas o ofício dos mestres tem natureza quase semelhante e um exercício inteiramente o mesmo. Da mesma forma também aqueles doze a quem o Senhor escolheu para que proclamassem ao mundo a nova pregação do evangelho tiveram precedência sobre os demais em ordem e dignidade. No entanto, o sentido e a etimologia do termo podem chamar corretamente apóstolos a todos os ministros eclesiásticos, visto que são todos enviados pelo Senhor e são seus mensageiros. Contudo, visto que importava muitíssimo que se tenha seguro conhecimento acerca da missão desses que apresentariam coisa nova e inaudita, foi conveniente que esses doze, a cujo número mais tarde se acrescentou Paulo [At 9.15; Gl 1.1], sejam mencionados acima dos outros por um título especial. Na verdade, o próprio Paulo, em alguma parte [Rm 16.7], atribuiu este título a Adrônico e Júnias, a quem diz que eram insignes entre os apóstolos; quando, porém, quer falar acuradamente, o atribui exclusivamente àquela primeira ordem. E este é o uso comum da Escritura. Os pastores, entretanto, exceto que regem, um a um, determinadas igrejas a si designadas, mantêm com os apóstolos o mesmo cargo. Além disso, de que natureza seja esse encargo ainda ouviremos mais claramente.

João Calvino

OS DIVERSOS OFÍCIOS EXCLESIÁSTICOS DA IGREJA PRIMITIVA, SEGUNDO EFÉSIOS 4.11, E SUA NATUREZA

Aqueles que presidem ao governo da Igreja, segundo a instituição de Cristo, são chamados por Paulo [Ef 4.11], primeiro apóstolos; em seguida, profetas; terceiro, evangelistas; quarto, pastores; finalmente, mestres; dos quais apenas os dois últimos têm função ordinária na Igreja, os outros três o Senhor suscitou no início de seu reino, e às vezes ainda suscita, conforme convém à necessidade dos tempos. Qual é a função apostólica se faz evidente à luz deste mandado: “Ide, pregai o evangelho a toda criatura” [Mc 16.15]. Não se atribuem seus limites definidos; ao contrário, os envia para que conduza o mundo inteiro à obediência de Cristo, para que, espargindo o evangelho por toda parte que possam, em todos os lugares erijam seu reino. Por isso mesmo Paulo, como quisesse provar seu apostolado, recorda que não ganhou para Cristo uma única cidade, senão que propagava o evangelho ampla e extensivamente; nem pôs as mãos em fundamentos alheios, senão que plantava igrejas onde ainda não se ouvira o nome do Senhor [Rm 15.20]. Portanto, os apóstolos foram enviados para que reconduzissem o mundo inteiro da alienação à verdadeira obediência de Deus; e mediante a pregação do evangelho, implantassem por toda parte o reino; ou, se preferes, para, como os primeiros construtores da Igreja, lançassem seus fundamentos em todo o mundo [1Co 3.10]. Ele chama profetas não a quaisquer intérpretes da vontade divina, mas àqueles que exceliam em singular revelação, como agora nenhum subsiste, ou são menos evidentes. Por evangelistas entendo aqueles que, embora fossem menores que os apóstolos em dignidade, entretanto mais perto estavam em seu ofício, e até às vezes se assemelhavam a eles, como, por exemplo, Lucas, Timóteo, Tito e demais como eles; e talvez também os setenta discípulos que Cristo designou em segundo lugar após os apóstolos [Lc 10.1]. Segundo esta interpretação, a qual me parece coerente tanto com as palavras quanto com a opinião de Paulo, essas três funções não foram por isso instituídas na igreja para que fossem perpétuas, mas apenas para esse tempo em que deveriam ser implantadas igrejas onde nenhuma havia antes existido, ou certamente tinham de ser transpostas de Moisés para Cristo. Embora eu não negue que depois houve também apóstolos, ou pelo menos evangelistas no lugar deles, Deus às vezes os suscitava, como ocorreu em nosso tempo. Pois por meio deles se fez necessário que reconduzissem, da defecção do Anticristo, de volta a Igreja. Contudo, ao próprio ofício chamo extraordinário, porquanto ele não tem lugar nas igrejas regularmente constituídas. Seguem-se pastores e mestres, dos quais a Igreja jamais pode prescindir, entre os quais penso haver esta distinção: que os mestres não presidem a disciplina, nem a administração dos sacramentos, nem as admoestações ou exortações, mas apenas a interpretação da Escritura, para que entre os fiéis se retenha pura e sã a doutrina. O ofício pastoral, entretanto, contém em si todas estas funções.

João Calvino

DIGNIDADE E EXCELÊNCIA DO MINISTÉRIO DA PALAVRA NO PRÓPRIO ENSINO DA ESCRITURA

Já frisei supra que nosso Senhor exaltou a dignidade deste estado com todos os louvores possíveis, a fim de que o estimemos como uma coisa superior a todas as excelências.27 O Senhor atesta ser singular benefício prodigalizar aos homens suscitando-lhes mestres, onde ordena ao Profeta exclamar “quão formosos são os pés daqueles que anunciam a paz” [Is 52.7]; e quando chama os apóstolos “luz do mundo” e “sal da terra” [Mt 5.13,14]. Não podia adornar este ofício mais espledidamente do que quando disse: “Quem vos ouve, ouve a mim; quem vos rejeita, rejeita a mim” [Lc 10.16]. Nenhuma passagem, porém, é mais luminosa que em Paulo, na Segunda Epístola aos Coríntios, onde, de forma expressa, trata esta questão. Portanto, ele declara que na Igreja nada pode haver mais preclaro ou glorioso do que o ministério do evangelho, quando é a ministração do Espírito, da justiça e da vida eterna [2Co 3.9; 4.6]. Estas e considerações afins dizem respeito a que esse modo de a Igreja ser governada e mantida através dos ministros, que o Senhor sancionou para sempre, não deve ser entre nós menosprezado, e por fim caia em desuso pelo próprio descaso. E de fato, quão grande é sua necessidade, já o declarou não apenas por palavras, mas também por exemplos. A Cornélio, como o quisesse iluminar mais plenamente pela luz de sua verdade, enviou-lhe um anjo do céu para que a Pedro encaminhasse [At 10.3-6]. A Paulo, como o quisesse chamar ao conhecimento dele e inseri-lo na Igreja, não lhe fala com sua próprio voz, mas o envia a um homem de quem recebe não só o ensino da salvação, mas também a santificação do batismo [At 9.6, 11, 12, 17-19]. Se não acontece ao acaso que um anjo, que é o intérprete de Deus, de expor a Cornélio a vontade de Deus, se abstém ele mesmo, mas ordena que um homem seja encarregado de expô-la; que Cristo, o Mestre único dos fiéis, confia a Paulo o magistério de um homem, e esse Paulo, que havia determinado arrebatar ao terceiro céu e dignar de mirífica revelação de coisas inefáveis [2Co 12.2-4], quem ouse agora menosprezar esse ministério ou preteri-lo como sendo supérfluo, por cujo uso Deus quis que tais comprovações fossem atestadas?

João Calvino

O SAGRADO MINISTÉRIO, INSTRUMENTO DIVINO, BASE VITAL PARA GERIR E NORTEAR A IGREJA

Com as palavras supra-referidas Paulo mostra, em primeiro lugar, que esse ministério dos homens, do qual Deus se serve para o governo da Igreja, é o nervo motriz através do qual os fiéis são ligados em um só corpo. Em segundo lugar, porém, também indica, não de outro modo, poder a Igreja manter-se incólume, para que se sustente com estas salvaguardas, nas quais aprouve ao Senhor estabelecer sua preservação. “Cristo subiu ao alto”, diz ele, “para que preenchesse todas as coisas” [Ef 4.10]. Mas, esta é a maneira de preencher: que por meio dos ministros, aos quais confiou este ofício e conferiu a graça de levar avante sua função, dispensa e distribui seus dons à Igreja, se mostra pessoalmente presente, manifestando o Espírito o poder Deus nesta sua instituição, para que não seja ela inútil e ociosa. Assim se leva a bom termo a renovação dos santos, de modo que também o corpo de Cristo é edificado [Ef 4.12] e assim “crescemos em tudo naquele que é a Cabeça” [Ef 4.15], e nos faz mutuamente unidos; e assim somos todos conduzidos à unidade de Cristo, caso a profecia tenha entre nós vigor, se acolhemos os apóstolos, se não desprezamos a doutrina a nós ministrada. Portanto, na desintegração, ou antes na ruína e destruição da Igreja, se empenha quem ou diligencia por abolir ou quase faz menos necessária esta ordem de que estamos a discorrer, e este gênero de regime. Pois, nem a luz e o calor, nem a comida e a bebida são tão necessários para nutrir e suster a presente vida, quanto é o ofício apostólico e pastoral para conservar a Igreja na terra.

João Calvino

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

DOS MESTRES E MINISTROS DA IGREJA SUA ELEIÇÃO E OFÍCIO

 DEUS CONFIOU AO MINISTÉRIO DOS HOMENS O GOVERNO DE SUA IGREJA, EXPRESSÃO DA CONSIDERAÇÃO EM QUE OS TEM, INSTRUMENTO CONVENIENTE PARA INFUNDIR HUMILDADE E MEIO PARA FOMENTAR O AMOR E A UNIDADE ENTRE OS FIÉIS

Agora nos cabe falar da ordem mediante a qual o Senhor quis que sua Igreja fosse governada. Pois ainda que importe que exclusivamente reja e reine na Igreja, ele também preside nela ou exerce eminência sobre ela, e é indispensável que este império seja exercido e administrado somente por meio de sua Palavra. No entanto, visto que ele não habita entre nós em presença visível, de sorte que não nos declara sua vontade pessoalmente, por sua boca, dissemos que nisso se aplica o ministério dos homens e como que uma obra vicária, não lhes transferindo seu direito e honra, mas somente para que, pela boca deles, ele mesmo execute sua obra da mesma forma que também o artífice usa de um instrumento para fazer seu trabalho. Vejo-me na obrigação de reiterar novamente coisas que já expus previamente. Certamente que ele poderia fazer isso ou por si mesmo, sem qualquer outro auxílio ou instrumento, ou até por meio de anjos. Entretanto, muitas são as causas por que ele prefere fazê-lo por meio dos homens. Ora, deste modo declara, em primeiro lugar, sua consideração para conosco, quando dentre os homens toma aqueles que a seu favor desempenhem embaixada no mundo [2Co 5.20], que sejam seus intérpretes da vontade secreta; enfim, que representem sua pessoa. E assim, com evidência, comprova não ser vão que, de quando em quando, nos chame templos seus [1Co 3.16, 17; 6.19; 2Co 6.16], enquanto da boca dos homens, como se fosse do santuário, dá aos homens suas respostas. Em segundo lugar, este é um ótimo e ultilíssimo exercício à humanidade, enquanto nos acostuma a obedecer à sua Palavra, conquanto ela é pregada através de homens semelhantes a nós, por vezes até inferiores em dignidade. Se ele falasse pessoalmente do céu, não haveria de se maravilhar, sem tardança seus sacros oráculos seriam recebidos reverentemente pelos ouvidos e ânimos. Pois, quem não se apavoraria de seu manifesto poder? Quem não se sentiria aturdido com aquele imenso fulgor? Quando, porém, um homenzinho qualquer surgido do pó fala em nome de Deus, aqui, de mui excelente testemunho declaramos nossa piedade e deferência para com o próprio Deus, se nos exibimos dóceis a seu ministro, quando, no entanto, em coisa alguma este nos exceda. Portanto, também por esta causa o tesouro de sua sabedoria celestial está oculto em vasos frágeis e de barro [2Co 4.7], para que assuma mais segura comprovação de quão grande é nosso apreço por ele. Em terceiro lugar, nada era mais apropriado para fomentar mútuo amor do que os homens serem ligados entre si por este vínculo, enquanto um é constituído pastor para que, a um tempo, ensine aos demais, os que se ordenam discípulos recebem a doutrina comum de uma só boca. Ora, se cada um se bastasse a si mesmo, nem tivesse necessidade da ajuda de outrem, qual é a soberba do engenho humano, cada um desprezaria aos outros e seria por eles desprezado. Portanto, aquele que o Senhor previu haver de ser o mais firme nó para reter sua unidade, com esse apertou sua Igreja, enquanto ministrou aos homens a doutrina da salvação e da vida eterna, para que pelas mãos desses a comunicasse aos demais. A isto visava Paulo quando escrevia aos Efésios: “Um só corpo, um só Espírito, assim como também fostes chamados em uma só esperança de vossa vocação. Um só Senhor, uma só fé, um só batismo. Um só Deus e Pai de todos, que é sobre todas as coisas, e através de todas as coisas, e em todos nós. A cada um de nós, porém, foi dada graça segundo a medida do dom de Cristo. Pelo que diz: Quando subiu ao alto levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens. O que desceu é aquele mesmo que subiu, para que preenchesse a todas as coisas. E ele mesmo deu uns para apóstolos, outros para profetas, porém outros para evangelistas, outros para pastores e mestres, para a renovação dos santos, para a obra do ministério, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da idade plenamente adulta, para que não mais sejamos meninos que são levados em volta por todo vento de doutrina; pelo contrário, buscando a verdade em amor, cresçamos em tudo àquele que é a Cabeça, isto é, a Cristo, em quem todo o corpo, encaixado e compactado através de toda juntura de sua dispensação, conforme a ação na medida de cada parte, promove o crescimento do corpo para a edificação de si próprio através do amor” [Ef 4.4-16].

João Calvino

NO ROMANISMO SUBSISTEM RESQUÍCIOS DA IGREJA, PORÉM, REGIDO QUE É PELO PAPA, CORIFEU DO REINO DO ANTICRISTO, LONGE ESTÁ DE SER A VERDADEIRA IGREJA

Quando, pois, não queremos simplismente conceder aos papistas o título de Igreja, com isso não estamos negando que hajam igrejas entre eles; apenas litigamos quanto à verdadeira e legítima constituição da Igreja que se requer na comunhão, tanto como nos sacramentos, cujos sinais são da profissão de fé cristã, quanto de fato, e especialmente, da doutrina. Daniel [9.27] e Paulo [2Ts 2.4] predisseram que o Anticristo haverá de assentar-se no templo de Deus; de nossa parte, fazemos o pontífice romano o corifeu e guarda-estandarte desse reino celerado e abominado.
Pelo fato de que seu assento está colocado no templo de Deus, com isso quer dizer que seu reino será tal que não extinguirá o nome de Cristo nem de sua Igreja. Portanto, daqui se faz evidente que longe estamos de negar que mesmo sob sua tirania subsistam igrejas; apenas dizemos que ele profanou com sua sacrílega impiedade, que as afligiu com seu desumano império, que as envenenou com falsas e ímpias doutrinas e que quase as entregou no matadouro, a tal ponto que Cristo está soterrado, o evangelho sem efeito, a piedade exterminada e o culto divino quase destruído. Em suma, que tudo está tão conturbado, que mais parece uma imagem de Babilônia do que da santa cidade de Deus. Concluindo, digo que são igrejas na extensão em que o Senhor aí conserva maravilhosamente remanescentes de seu povo, por mais miseravelmente dispersos e espalhados estejam, na extensão em que perduram alguns sinais de Igreja, e esses especialmente cuja eficiência nem a astúcia do Diabo nem a depravação humana pode destruir. Mas porque, por outro lado, as marcas que aí devemos principalmente mirar nesta discussão estão obliteradas, afirmo que cada congregação, e todo o corpo, carecem da forma da Igreja legítima.

João Calvino

COMO ENTRE OS JUDEUS DE OUTRORA, A DESPEITO DE SEUS DESVIOS, PERMANECIAM SINAIS DO PACTO DIVINO, SUBSISTEM NO ROMANISMO VESTÍGIOS DE IGREJA, APESAR DE SEUS CRASSOS ERROS

Entretanto, como entre os judeus permaneciam outrora certas prerrogativas peculiares da Igreja, assim hoje não removemos dos papistas os vestígios da Igreja os quais o Senhor quis que da extinção subsistissem entre eles. Com aqueles Deus uma vez estabelecera seu pacto. Este persistia, com luta contra sua impiedade apoiado mais na firmeza de si próprio do que na observância da parte deles. Portanto, ainda que merecessem por sua deslealdade que Deus rompesse com eles, contudo sempre continuou mantendo de pé sua promessa, pois ele é constante e firme em fazer o bem. Assim, por exemplo, a circuncisão nunca pôde ser tão profanada pelas mãos impuras, que não fosse ao mesmo tempo verdadeiro sinal e sacramento de seu pacto. Donde os filhos que lhes nasciam o Senhor os chamava seus [Ez 16.20, 21], os quais, senão por bênção especial, absolutamente não lhe pertenceriam. Como, porém, o Senhor implantou seu pacto em França, Itália, Alemanha, Espanha, Inglaterra, quando essas províncias foram oprimidas pela tirania do Anticristo, no entanto, para que seu pacto permanecesse inviolável, aí conservou primeiro o batismo, testemunho do pacto que, consagrado por sua boca, contraposta a impiedade humana, retém sua força; segundo, por sua providência proveu que também outros resquícios subsistissem, para que a Igreja não perecesse inteiramente. Mas, da mesma forma que são assim freqüentemente demolidos os edifícios cujos fundamentos e as ruínas permaneçam, assim ele não permitiu que sua Igreja fosse pelo Anticristo ou subvertida de seu fundamento, ou nivelada ao solo, por mais que, para punir a ingratidão dos homens que haviam tido sua Palavra em desprezo, permitiu que ocorresse horrível convulsão e desagregamento, mas também da própria devastação quis que o edifício sobrevivesse semi-arruinado.

João Calvino

TAMPOUCO PODEM OS FIÉIS DE CRISTO, OBEDIENTES À PALAVRA DE DEUS, CONFERIR A SUA IGREJA A AUTORIDADE, HONRA E SOBERANIA QUE OS ROMANISTAS REIVINDICAM, COMO NO-LO MOSTRA O EXEMPLO DOS PROFETAS DE OUTRORA

Quanto ao segundo ponto supra-referido, porém, contendemos mais ainda. Ora, se se considera a Igreja ao ponto de termos que reverenciá-la, reconhecer sua autoridade, receber suas advertências, submeter-nos a seu juízo e nos conformar com ela em tudo e por tudo, não podemos conceder o título de Igreja aos papistas, segundo esta consideração, porque não nos é necessário tributar-lhes sujeição e obediência. Entretanto, de bom grado lhe concedemos o que concederam os profetas aos judeus e israelitas de seu tempo, quando ali as coisas estavam ou em igual estado ou até melhor. Contudo vemos que proclamam continuamente como sendo para si profanas as assembléias, às quais não é mais lícito anuir do que a Deus regenerar [Is 1.13]. E, certamente, se essas assembléias foram igrejas, então segue-se que da Igreja de Deus foram alheados em Israel Elias, Miquéias entre outros; na Judéia, porém, Isaías, Jeremias, Oséias e os demais dessa estirpe, a quem os sacerdotes e o povo de seu tempo odiavam e execravam como se fossem piores que quaisquer incircuncios. Se essas foram igrejas, então a Igreja não é “a coluna da verdade” [1Tm 3.15], mas a coluna da mentira; não o tabernáculo do Deus vivo, mas um receptáculo de ídolos. Portanto, os profetas tinham necessariamente de abstrair-se do consenso desses ajuntamentos, que outra coisa não eram senão ímpio conluio contra Deus. Pela mesma razão, se alguém reconhece por igrejas as presentes congregações contaminadas de idolatria, de superstição, de doutrina ímpia, em cuja plena comunhão o homem cristão deva permanecer, esse erra muito até em dar seu consentimento à doutrina. Ora, se são igrejas, na mão delas está o poder das chaves; mas as chaves têm nexo indivisível com a Palavra, que aí foi destruído. Ademais, se são igrejas, vale entre elas a promessa de Cristo, ou: “Tudo quanto tiverdes ligado” etc. [Mt 16.19; 18.18; Jo 20.23]. Mas, em contrário, excluem de sua comunhão todos quantos não se confessam fingidamente servos de Cristo. Logo, ou transitória é a promessa de Cristo, ou, ao menos neste aspecto, elas não são igrejas. Enfim, em lugar do ministério da Palavra eles têm escolas de impiedade e um porão com todo gênero de erros. Conseqüentemente, segundo esta maneira de julgar, ou não são igrejas, ou nenhum sinal restará mercê do qual as legítimas assembléias dos fiéis são distinguidas dos ajuntamentos dos turcos.

João Calvino

A IGREJA PAPAL, TÃO CORRUPTA QUANTO ISRAEL DOS TEMPOS DE JEROBOÃO, E ATÉ MAIS IDÓLATRA, DA QUAL NÃO SE PODE ASSOCIAR AO CULTO SEM INCORRER EM PROFANAÇÃO

Então, que os papistas neguem e peçam, se podem, para que atenuem ao máximo seus vícios, dizendo que o estado da religião entre eles não é tão corrompido e viciado como foi no reino de Israel sob Jeroboão. Com efeito, eles têm mais crassa idolatria; nem na doutrina são sequer uma gotinha mais puros, senão que, talvez, nesta mesma sejam até mais impuros. Deus, e mesmo todos quantos são dotados de mediano discernimento, serão minhas testemunhas, e o próprio fato em si também o declara, que não estou exagerando aqui. Ora, quando nos querem constranger à comunhão de sua Igreja, duas coisas exigem de nós: primeira, que participemos de todas suas preces, sacramentos e cerimônias; segunda, que tudo quanto de honra, de poder, de jurisdição que Cristo atribuiu a sua Igreja, também atribuamos nós a sua Igreja. No que tange à primeira, confesso que todos os profetas que houve em Jerusalém, embora aí as coisas estivessem sobremodo corruptas, não sacrificaram à parte nem tiveram reuniões separadamente dos outros para orar. Pois tinham o mandamento de Deus, pelo qual se lhes ordenava congregar-se no templo de Salomão [Dt 12.11-14]; também os sacerdotes levíticos, os quais, porquanto foram pelo Senhor ordenados oficiantes das coisas sagradas [Ex 29.9], nem ainda foram depostos, por mais que indignos fossem dessa honra, sabiam que de direito ainda ocupavam esse lugar. Mas – e isto constitui o ponto principal de nossa disputa – não lhes obrigavam a nenhuma superstição, nem a fazer coisa alguma que não fosse ordenada por Deus.25 Entre estes, porém, quero dizer os papistas, que há de semelhante? Pois, dificilmente podemos ter com eles qualquer reunião em que não nos poluamos de manifesta idolatria. Certamente que o vínculo primordial de comunhão está em sua missa, a qual abominamos como sendo o sacrilégio máximo. Se isso é procedente ou improcedente, ver-se-á em outro lugar. Agora é bastante mostrar que, neste aspecto, que nosso caso é bem diferente daquele dos profetas, os quais, embora estivessem presentes aos ritos sacros de ímpios, não eram obrigados ou a presenciar, ou a participar de algumas cerimônias se não eram instituídas por Deus. E, caso desejam ter um exemplo absolutamente parecido, então o tomemos do reino de Israel. Segundo a ordenação de Jeroboão, permanecia a circuncisão, faziam-se os sacrifícios, a lei era considerada santa, era invocado aquele Deus que haviam recebido dos pais; mas, em razão de formas cultuais inventadas e proibidas, tudo quanto ali se fazia Deus reprovava e condenava [1Rs 12.26–13.5]. Que me seja dado um único Profeta, ou algum homem piedoso, que sequer uma vez haja adorado em Betel, ou haja feito aí um sacrifício. Pois sabiam que isto não haveriam de fazer sem que se contaminassem com algum sacrilégio. Portanto, defendemos que a comunhão da Igreja não deve estender-se tanto, que devamos segui-la mesmo quando degenere de seu dever usando ritos e cultos profanos, condenados pela Palavra de Deus.

João Calvino

A IGREJA PERSISTE EM ISRAEL, MESMO NOS PERÍODOS DE MAIOR IDOLATRIA E DECADÊNCIA ESPIRITUAL, CONTUDO CORRUPTA E DEGRADADA, COMO O EVIDENCIA A ERA DOS REIS

E então, perguntaria alguém, porventura nem mesmo uma porçãozinha da Igreja restou entre os judeus, uma vez que se entregaram à idolatria? A resposta é fácil. Primeiro digo que na própria defecção à idolatria houve certa gradação, pois tampouco diremos que a mesma queda se deu em Judá e em Israel no tempo em que, primeiro, um e outro se desviou do culto puro de Deus. Quando Jeroboão, contra a expressa proibição de Deus, fabrica os bezerros e lhes dedica local lícito à adoração, a religião corrompeu inteiramente [1Rs 12.28-30]. Os judeus se contaminaram com costumes ímpios e opiniões supersticiosas antes que falsamente mudassem a condição na forma exterior da religião. Porque, ainda que sob Roboão muitas cerimônias pervertidas já haviam comumente adotado para si, visto que, no entanto, permaneciam em Jerusalém tanto o ensino da lei e o sacerdócio, bem como também os ritos como Deus os instituíra, os piedosos tinham aí tolerável condição de Igreja. Entre os israelitas, até o reinado de Acabe, as coisas longe estiveram de mudadas para melhor; na verdade, então até se degeneraram para pior. Os reis que o sucederam depois até a destruição do reino, em parte se lhe assemelharam, em parte, quando quiseram ser um pouco melhores que ele, seguiram o exemplo de Jeroboão; todos, porém, à uma, foram ímpios e idólatras. Na Judéia houve, de tempos em tempos, várias mudanças; enquanto reis pervertiam o culto de Deus com superstições por eles engendradas, outros restauravam a religião deturpada, até que também os próprios sacerdotes poluíram o templo de Deus com ritos profanos e abomináveis.

João Calvino

A IGREJA PAPAL SE ASSEMELHA A ISRAEL DE OUTRORA, DENUNCIADO PELOS PROFETAS EM DECORRÊNCIA DE SEUS DESVIOS DOS CAMINHOS DO SENHOR

Mas, certamente ainda mais se comprovará em que lugar devem estar todas as igrejas que a tirania desse ídolo romano ocupou, se a igreja papal for comparada com a igreja israelita de outrora, qual foi delineada nos profetas. Entre os judeus e os israelitas subsistia então a Igreja verdadeira, quando persistiriam firmes nas leis do pacto, de fato obtendo da benevolência de Deus esses elementos nos quais a Igreja se contém. Tinham na lei a doutrina da verdade; seu ministério estava nas mãos dos sacerdotes e dos profetas. Pelo sinal da circuncisão, eram iniciados na religião; por outros sacramentos eram exercitados à confirmação da fé. Sem dúvida que à sua sociedade competiam os encômios com que o Senhor honrou sua Igreja.
Depois que, desertada a lei do Senhor, degeneraram à idolatria e superstição, decaíram em parte dessa prerrogativa. Pois, quem ousou arrebatar o título de igreja àqueles entre os quais Deus comissionou a pregação de sua Palavra e a observância de seus mistérios? Por outro lado, quem ousou, sem qualquer exceção, chamar igreja a esse ajuntamento onde a Palavra do Senhor é escancarada e impunemente calcada aos pés, onde seu ministério, o cerne principal e, mais ainda, a alma da Igreja é inteiramente destruída?

João Calvino

A UNIDADE DA IGREJA QUE CIPRIANO TAMBÉM SUSTENTA SE ENFEIXA NO SENHORIO DE CRISTO, EM CONFORMIDADE COM A PALAVRA DA ESCRITURA

Igualmente Cipriano, seguindo a Paulo, afirma que a fonte de toda concórdia eclesiástica se deriva do episcopado único de Cristo. Em seguida adiciona: “A Igreja é una, a qual, em decorrência do incremento de sua fecundidade, se estende mais amplamente formando uma verdadeira multidão, como do sol muitos são os raios, mas uma só a luz; e os ramos de uma árvore são muitos, mas um só o tronco firmado na raiz tenaz. E, quando de uma só fonte fluem muitos riachos, ainda que da prodigalidade da exuberante abundância apareça difusa multiplicidade, unidade, contudo permanece na origem. Arranca-se um raio do corpo do sol: a unidade não sofre divisão. Quebra-se de uma árvore um ramo, o ramo quebrado não poderá brotar. Secciona-se da fonte um riacho, este se seca. Assim a Igreja banhada na luz do Senhor: entretanto se estende por todo o orbe uma só luz que se difunde por toda parte.”23 Não se pôde dizer mais apuradamente para exprimir essa indivisível conexão que todos os membros de Cristo têm entre si. Vemos como constantemente nos remete ao próprio Cabeça da Igreja. Conseqüentemente, sentencia que as heresias e cismas promanam do fato de que não se volta à fonte da verdade, nem se busca a Cabeça, nem se conserva o ensino do Mestre celestial.24 Então se vão e vociferam dizendo que somos hereges, que nos retiramos de sua Igreja, quando não houve nenhuma causa de separação, senão esta única: que de modo algum podem suportar a confissão da pura verdade. Não obstante, deixo de declarar que eles nos expulsaram com anátemas e execrações, o que, afinal, por si só nos absolve mais que suficientemente, a menos que queiram condenar de cisma também aos apóstolos, com os quais temos causa semelhante. Reitero que Cristo predisse a seus apóstolos que sucederá que seriam escorraçados das sinagogas por causa de seu nome [Jo 16.2]. Ora, essas sinagogas de que está falando eram, então, tidas como igrejas legítimas. Portanto, uma vez ser evidente que também fomos escorraçados, e estamos preparados a mostrar que isto se deu em função do nome de Cristo, certamente que se impõe indagar acerca da causa antes que se defina algo de nós, de uma forma ou outra. Mas se o querem assim, de bom grado lhes concedo, porque a mim me é suficiente provar que fomos obrigados a deles afastar-nos, para nos achegarmos a Cristo.

João Calvino

IMPROCEDÊNCIA DA ALCUNHA DE HERESIA E CISMA QUE OS ROMANISTAS LANÇAM CONTRA OS DE CRISTO, VISTO SEREM FIÉIS À PALAVRA DE DEUS

De fato eles nos fazem réus de cisma e heresia, porque pregamos uma doutrina distinta, e não lhes obedecemos às leis, e temos em separado nossas reuniões para as orações, para o batismo, para a ministração da Ceia e outros atos sacros; isso sem dúvida constitui gravíssima acusação, mas uma acusação que, de modo algum, requer longa ou laboriosa defesa. Hereges e cismáticos são chamados aqueles que, estabelecida a dissensão, rompem a comunhão da Igreja. De fato esta comunhão é sustentada por dois vínculos: a confissão da sã doutrina e a caridade fraterna. Do quê Agostinho impõe esta distinção entre hereges e cismáticos: aqueles, na verdade, corrompem a pureza da fé com dogmas falsos; estes, porém, quebram o vínculo da comunhão às vezes até mesmo na similaridade da fé. Com efeito, é preciso notar também que esta associação de amor de tal modo depende da unidade de fé, que esta deve ser seu início, o fim, afinal a regra única. Lembremo-nos, pois, que sempre que se nos recomenda a unidade eclesiástica, requer-se que, enquanto nossas mentes têm o mesmo sentir em Cristo, também as vontades em mútua benevolência em Cristo têm de ser associadas. E assim Paulo, quando nos exorta em relação a ela, assume que Deus é seu único fundamento, e que há uma só fé e um só batismo [Ef 4.5]. De fato, onde quer que o Apóstolo nos ensina a sentir o mesmo e a querer o mesmo, acrescenta imediatamente em Cristo [Fp 2.1, 5], ou segundo Cristo [Rm 15.5], significando que a unidade que se processa à parte da Palavra do Senhor é conluio de ímpios, não acordo entre fiéis.

João Calvino

O ROMANISMO, ALARDEANDO TAIS EXTERIORIDADES, PRETENDE SER A IGREJA DE CRISTO, ENTRETANTO SEM OBEDECER A SUA PALAVRA, DEIXANDO ASSIM DE FAZER JUS A TAL TÍTULO

De igual modo hoje os romanistas nos importunam e terrificam aos ignorantes com o nome da Igreja, quando são adversários capitais de Cristo. Portanto, ainda que exibam templo, sacerdócio e demais exterioridades deste gênero, de modo algum deve mover-nos este enganoso fulgor, pelo qual os olhos dos simplórios são deslumbrados, a admitirmos estar a Igreja onde a Palavra de Deus não se faz presente. Pois esta é a marca perpétua com a qual nosso Senhor assinalou os seus: “Quem é da verdade”, diz ele, “ouve minha voz” [Jo 18.37]. Igualmante: “Eu sou o bom pastor e conheço minhas ovelhas, e de minhas sou conhecido” [Jo 10.14]; “minhas ovelhas ouvem minha voz, e eu as conheço, e elas me seguem” [Jo 10.27]. Pouco antes, porém, dissera: “As ovelhas seguem a seu pastor, porque conhecem sua voz, mas não seguem a um estranho, antes, fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos” [Jo 10.4, 5]. Portanto, por que agimos deliberadamente como insanos saindo em busca da Igreja, quando Cristo já a marcou de sinal longe de ser dúbio, o qual, onde é contemplado, não pode induzir a erro de que a Igreja certamente está aí onde na verdade está ausente, nada resta que possa dar o verdadeiro sentido da Igreja? Pois a Igreja se fundamenta não sobre juízos de homens, não sobre sacerdócios, mas sobre a doutrina dos apóstolos e dos profetas, nos lembra Paulo [Ef 2.20]. Senão que, antes, ela deve ser distinguida mediante esta linha divisória com a qual Cristo as distinguiu entre si – Jerusalém, de Babilônia; a Igreja de Cristo, da conjuração de Satanás: “Quem procede de Deus”, diz ele, “ouve as palavras de Deus. Por isso não as ouvis, porque não procedeis de Deus” [Jo 8.47].
Em síntese, já que a Igreja é o reino de Cristo, e que ele reina somente por meio de sua Palavra, quem duvidará de que é uma mentira [Jr 7.4] a crença que nos querem impor, de que o reino de Cristo está onde não existe seu cetro, isto é, sua Palavra, com a qual tão-somente governa seu reino?.

João Calvino

O QUE CARACTERIZA A VERDADEIRA IGREJA NÃO É A SUCESSÃO APOSTÓLICA E FANTASIAS AFINS, TEMPLO E CERIMONIALISMO, MAS A PREGAÇÃO CORRETA DA PALAVRA E A OBEDIÊNCIA A SUA DOUTRINA E VERDADE

Portanto, é evidente que os romanistas não pretendem outra coisa, senão a que pretendiam antigamente os judeus, quando eram acusados pelo Senhor de cegueira, impiedade e idolatria. Pois, como aqueles se gabam vangloriosamente do templo, das cerimônias, dos sacerdócios, coisas essas que lhes pareciam de grande prova para certificar a Igreja, assim, em lugar da Igreja, certas representações externas são por eles interpostas as quais, freqüentemente, longe estão da Igreja e esta pode muito bem subsistir à parte delas. Portanto, nem devem eles ser refutados por nós com outro argumento além daquele com o qual Jeremias assacava contra aquela estulta confiança dos judeus, isto é: “Não vos fieis em palavras mentirosas, dizendo: Templo do Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor” [Jr 7.4], quando, em parte alguma, o Senhor nada reconhece como seu, senão onde sua Palavra é ouvida e piedosamente observada. Assim sendo, embora a glória de Deus repousasse no santuário entre querubins [Ez 10.4], e ele havia prometido estabelecer ali seu trono para sempre, sua majestade afastou dali, deixando aquele lugar sem glória nem santidade alguma, porque os sacerdotes corromperam o culto divino com suas superstições. Pois se foi possível que Deus desamparasse o templo para convertê-lo em lugar profano, quando parecia haver sido dedicado para residência perpétua da divina majestade, estes não devem fazer-nos crer que Deus está ligado a pessoas, lugares ou cerimônias externas, de tal maneira que ele esteja como que coagido a permanecer entre aqueles que só mantêm o título ou aparência de Igreja. E esta é a tese que Paulo sustém na Epístola aos Romanos, do nono capítulo até o duodécimo. Pois perturbava intensamente as consciências fracas que, enquanto aparentavam ser o povo de Deus, os judeus não só rejeitavam a doutrina do evangelho, mas até a perseguiam. Portanto, depois que expôs a doutrina, Paulo remove esta dificuldade e nega que aqueles judeus, inimigos da verdade, sejam a Igreja, mesmo quando nada lhes faltasse que pudesse, de outra maneira, desejar-se quanto à forma exterior da Igreja. E não alega outra razão senão esta: que não abraçavam a Cristo. Ele fala ainda um tanto mais expressamente na Epístola aos Gálatas, onde, comparando Isaque com Ismael, diz que muitos tinham lugar na Igreja aos quais não pertence a herança, porquanto não foram gerados de mãe livre [Gl 4.22-26]. Do quê, também, desce à comparação da dupla Jerusalém, pois assim como a lei foi dada no Monte Sinai, e o evangelho proveio também de Jerusalém, assim muitos nascidos e criados em condição servil, contudo se gabam de ser filhos de Deus, quando eles próprios não passam de bastardos. Nós também, em contraposição, enquanto ouvimos do céu o que uma vez foi pronunciado: “Lança fora a escrava e seu filho” [Gn 21.10], firmados neste inviolável decreto, desprezamos veementemente suas jactâncias insípidas. Ora, se se orgulham de condição exterior, Israel também era circunciso; se contendem acerca de antigüidade, ele era o primogênito; entretanto o vemos ser excluído. Se se busca a causa, Paulo a declara: entre os filhos não foram contados senão aqueles que foram gerados da semente pura e legítima da doutrina [Rm 9.6-8]. Segundo este modo de arrazoar, ele nega que Deus se obrigou a sacerdotes ímpios, pelo fato de que firmara um pacto com seu pai Levi de que ele haveria de ser seu mensageiro ou intérprete. De fato, volta contra eles sua falsa vanglória com que costumavam levantar-se contra os profetas, isto é, que se deveria ter a dignidade do sacerdócio em singular apreço. Isto ele admite de bom grado, e com esta condição argumenta com eles, já que estava preparado a observar o pacto; quando, porém, não respondem em mutualidade, merecem ser repudiados. Ora, que valor tem essa sucessão, a menos que tenha também conjunta também a imitação e o teor constante, isto é, que os antecessores, tão logo se inteiram de que estão a degenerar sua origem, sejam privados de toda honra correspondente [Ml 2.1-9]. Salvo se, talvez, porque Caifás sucedeu a muitos sacerdotes pios (de fato, a série desde Arão até ele foi contínua), visto que foi digno do nome da Igreja aquela celerada sinagoga. Com efeito, nem nos impérios terrenos se poderia tolerar que a tirania de um Calígula, de um Nero, de um Heliogábalo, dentre outros, porque tenham sucedido aos Brutos, aos Cipiões e aos Camilos, se diga o verdadeiro estado da coisa pública. Especialmente, porém, no regime da Igreja, nada mais leviano do que, posta de parte a doutrina, colocar a sucessão nas próprias pessoas. Contudo, nem mesmo os santos doutores, que equivocadamente se nos opõe, tiveram jamais o intento de provar que, simplesmente por direito hereditário, há igreja ali onde os bispos se têm sucedido uns aos outros. Mas, embora nada estivessem além de controvérsia, desde o princípio até essa época, ter sido mudado na doutrina, assumiam o que fosse suficiente para aniquilar todos os erros novos: contrapor-se a sua doutrina constantemente e de unânime consenso mantida desde os próprios apóstolos. Portanto, não há por que continuem por mais tempo a embair sob o nome da Igreja, que nós honramos reverentemente, como convém. Quando, porém, se chega à definição da Igreja, não só, como se diz, a água chega a sua boca, mas se atolam em sua lama, visto que constituem asquerosa meretriz no lugar da sagrada esposa de Cristo! Para que tal substituição não nos engane, que nos venha à mente, além de outras advertências, também esta de Agostinho. Ora, falando acerca da Igreja diz ele: “Ela própria é tal que por vezes é obscurecida e como que engolfada por multidão de escândalos, por vezes se mostra sossegada e livre na tranqüilidade do tempo, por vezes é coberta e agitada por ondas de tribulações e de tentações.” E menciona exemplos dizendo que bem freqüentemente as mais firmes colunas da Igreja ou sofrem valentemente o desterro por causa da fé, ou se mantêm ocultas por todo o orbe.

João Calvino

O ROMANISMO, UMA VEZ QUE VIOLA ESSES CÂNONES, LONGE ESTÁ DE SER A VERDADEIRA IGREJA, A DESPEITO DE SUAS PRETENSÕES FALAZES, PRINCIPALMENTE A PROCLAMADA SUCESSÃO APOSTÓLICA

Nesta medida, como é a situação sob o papismo, é possível entender que gênero de Igreja aí subsiste. Em vez do ministério da Palavra, aí reina um regime degenerado e conflacionado de falsidades, que em parte extingue a pura luz da verdade, em parte a sufoca; no lugar da Ceia do Senhor introduziu-se o mais hediondo sacrilégio; o culto de Deus foi deformado por variada e não tolerável aglomerado de superstições; a doutrina, à parte da qual não subsiste Cristianismo, foi inteira sepultada e rejeitada; as reuniões públicas, reduzidas a escolas de idolatria e impiedade. Portanto, ao nos apartar da funesta participação de tantas abominações, nenhum perigo há de que sejamos arrancados da Igreja de Cristo. A comunhão da Igreja não foi estabelecida com esta lei: que seja um vínculo mercê do qual sejamos enredilhados na idolatria, na impiedade, na ignorância de Deus e em outros gêneros de males; mas, antes, para que sejamos mantidos no temor de Deus e na obediência da verdade. Deveras magnificamente eles nos exalçam sua Igreja, de sorte que de modo algum outra no mundo pareça existir; então, como se fosse questão encerrada, todos os que se afastam da obediência dessa Igreja que pintam constituem cismáticos; são hereges todos os que ousam lutar contra sua doutrina. Mas, que razões apresentam que confirmem serem eles a verdadeira Igreja? Alegam, à luz de vetustos anais, o que aconteceu outrora na Itália, na França, na Espanha; que sua origem traçam daqueles santos varões que, com sã doutrina, aí fundaram e levantaram igrejas, e com seu sangue estabeleceram firmemente a própria doutrina e a edificação da Igreja; que na verdade a Igreja, assim entre eles consagrada, não só de dons espirituais, mas também pelo sangue de mártires, foi conservada por perpétua sucessão de bispos, para que não houvesse de perecer. Recordam de quão grande importância tornaram essa sucessão Irineu, Tertuliano, Orígenes, Agostinho entre outros. Quão frívolas são estas alegações, e evidentemente risíveis, farei com que não tenham nenhuma dificuldade para entender os que comigo porventura queiram ponderá-las por breve tempo. Sem dúvida, também os exortaria a volverem seriamente o espírito para isto, se confiasse poder ensinar entre eles algo de proveito. Quando, porém, eles têm este único propósito: seja qual for a via que tomem, direi somente umas poucas coisas, com as quais os homens bons e zelosos do verdadeiro possam desvencilhar-se de suas capciosidades. Primeiro, indago deles por que não citam a África, o Egito e toda a Ásia? Certamente porque em todas essas regiões cessou essa sacra sucessão dos bispos em virtude da qual se gloriam haverem preservado suas igrejas. Chegam, pois, à conclusão, uma vez que têm a verdadeira Igreja, a qual, desde que começou a existir, não foi destituída de bispos, pois têm sucedido uns aos outros em uma série perpétua. Mas, que responderão se eu citar a Grécia? Portanto, indago outra vez deles por que dizem que a Igreja pereceu entre os gregos, entre os quais essa sucessão de bispos nunca foi interrompida, que na opinião desses é o único meio de conservar a Igreja? Fazem dos gregos cismáticos. Mas, por quê? Porque, em se afastando da Sé Apostólica, perderam o privilégio. Como? Porventura não merecem perdê-lo muito mais os que se desgarraram do próprio Cristo? Portanto, em conclusão, é debalde seu pretexto de sucessão, e mais ainda que eles possuem em toda a perfeição a verdade de Cristo, tal como a receberam de seus antepassados, os antigos doutores.

João Calvino

COMPARAÇÃO DA FALSA IGREJA COM A VERDADEIRA

CRITÉRIO PARA SE DISTINGUIR A FALSA DA VERDADEIRA IGREJA: ERRO DOUTRINÁRIO E MINISTRAÇÃO INCORRETA DOS SACRAMENTOS

Já foi exposto de quanta importância entre nós se reveste o ministério da Palavra e dos Sacramentos, e até onde se deva outorgar-lhe reverência, para que nos seja perpétua senha de discernir-se a Igreja. Isto é, em primeiro lugar, onde quer que ele subsiste íntegro e ilibado, de nenhuma falha ou fraqueza moral é ela impedida de suster o título de igreja; em segundo lugar, esse mesmo ministério não deixa de ser considerado legítimo por ser viciado de erros os mais triviais. Ora, os erros aos quais se deva tal perdão foi indicado como sendo aqueles pelos quais não seja ferida a principal doutrina da religião, pelos quais não sejam sufocados os artigos da religião que devem ser matéria de consenso entre todos os fiéis; nos sacramentos, porém, aqueles que não suprimam nem cancelem a legítima instituição do Autor. Na verdade, tão logo a falsidade irrompeu na cidadela da religião, a suma da doutrina necessária foi transtornada, derruiu-se o uso dos sacramentos, incontestavelmente segue-se a morte da Igreja, exatamente como se deu cabo da vida do homem, quando lhe foi traspassada a garganta ou as entranhas lhe foram mortalmente feridas. E isto se evidencia claramente das palavras de Paulo, quando ensina que a Igreja foi alicerçada sobre a doutrina dos apóstolos e dos profetas, sendo o próprio Cristo a suprema pedra angular [Ef 2.20]. Se o fundamento da Igreja é a doutrina dos profetas e dos apóstolos, pela qual se ordena aos fiéis que depositem sua salvação só em Cristo, tirada essa doutrina, como o edifício se permanecerá firme por mais tempo? Portanto, necessariamente a Igreja se desaba onde perece aquela suma da religião que é a única que pode suster. Ademais, se a verdadeira Igreja “é coluna e sustentáculo da verdade” [1Tm 3.15], certamente que não é Igreja o reino onde predominam a mentira e a falsidade.

João Calvino

O RIGORISMO QUANTO AOS PECADOS GRAVES NA IGREJA PRIMITIVA, EM CONTRASTE COM OS LEVES, FACILMENTE PERDOÁVEIS PORQUE ERAM TIDOS COMO RESULTANTES DA FRAQUEZA HUMANA, LONGE DE IMPLICAR QUE DEUS DIFICILMENTE OS PERDOE

Sem dúvida que não me escapa que escritores antigos interpretaram como erros mais leves os pecados que aos fiéis se remitem diariamente, os quais se insinuam sorrateiros da fraqueza da carne; o arrependimento solene, porém, que se requeria então para as transgressões mais graves, a eles lhes pareceu não mais dever-se repetir como não o era o batismo. Esta interpretação não deve ser assim recebida como se ou quisessem eles precipitar no desespero aqueles que decaíssem novamente do primeiro arrependimento, ou revelar esses erros, como se fossem coisas banais à vista de Deus. Pois sabiam que, freqüentemente, os santos tibubeiam em incredulidade, juramentos supérfluos por vezes lhe escapam, a ira de vez em quando refervem, mais ainda, prorrompem em manifestos vitupérios, ademais, laboram em outros males que o Senhor não abomina ligeiramente; mas assim os chamavam para que os distinguissem das faltas públicas, que vinham ao conhecimento da Igreja com grande escândalo. Que, porém, tão dificilmente perdoavam aqueles que haviam perpetrado algo digno de censura eclesiástica, fazia-se não porque pensassem que o perdão era difícil junto ao Senhor; ao contrário, com esta severidade queriam atemorizar outros, para que não se arrojassem temeriamente a iniqüidades por cujo merecimento fossem alienados da comunhão da Igreja. Contudo, a Palavra do Senhor, que aqui nos deve ser por única regra, incontestavelmente prescreve maior moderação, ainda que ensine até esse ponto dever-se estender o rigor da disciplina, que da tristeza não seja absorvido aquele a quem principalmente importa a resolução [2Co 2.7], como já discorremos mais profusamente supra.

João Calvino

MESMO OS CHAMADOS PECADOS VOLUNTÁRIOS, NÃO DEVIDOS A FRAQUEZA OU IGNORÂNCIA, SÃO SUSCETÍVEIS DE PERDÃO DIVINO

Alguns, um tanto mais prudentes, quando vêem os dogmas de Novácio sendo refutados pela tão grande clareza da Escritura, não fazem irremissível qualquer pecado, senão a transgressão voluntária da lei, na qual alguém se arremete cônscia e deliberadamente. Com efeito, os que assim falam crêem que não se perdoa nenhum outro pecado, senão o que é cometido por ignorância.15 Quando, porém, o Senhor ordenou na lei que se oferecessem sacrifícios, uns para expiar os pecados voluntários dos fiéis [Lv 6.1-7], outros para remitir os pecados cometidos por ignorância [Lv 4.1-35], de quão grande improbidade é não conceder nenhuma expiação ao pecado voluntário! Digo que nada é mais evidente que o sacrifício único de Cristo valer para remitir os pecados voluntários dos santos, já que o Senhor assim o testificou nos sacrifícios carnais, que eram meras figuras. Ademais, quem escuse de ignorância a Davi, que tão profundamente se evidencia ter sido versado na lei? Porventura Davi ignorava que o crime de adultério e homicídio fosse tão grande, quando diariamente o punia nos outros? Porventura o fratricídio parecia coisa legítima aos patriarcas? Porventura os coríntios haviam progredido tanto, que pensassem que a lascívia, a impureza, a fornicação, o ódio, as contendas agradassem a Deus? Porventura Pedro, tão diligentemente advertido, ignorava a tremenda gravidade de negar o Mestre? Portanto, não obstruamos, com nossa maldade, o caminho da misericórdia de Deus que se manifesta tão benignamente.

João Calvino

ÀS IGREJAS DOS TEMPOS APOSTÓLICOS É TAMBÉM ASSEGURADO O PERDÃO MISERICORDIOSO DE DEUS

Que dizer ante o fato de que, por vezes, pecados gravíssimos se assenhorearam de igrejas inteiras, dos quais, entretanto, Paulo clementemente as poupou, em vez de votar-lhes as cabeças à execração? A defecção dos gálatas não era delito medíocre [Gl 1.6, 7; 3.1; 4.9]; os coríntios eram ainda menos escusáveis que eles, porque eram ricos em abominações ainda maiores; contudo, nem um, nem outro, é excluído da misericórdia do Senhor. Com efeito, aqueles mesmos que, mais do que outros se consentiram em impureza, em fornicação e em licenciosidade, são expressamente convivados ao arrependimento [2Co 12.21]. Ora, permanece e eternamente permanecerá a aliança inviolável do Senhor, a qual firmou solenemente com Cristo, o verdadeiro Salomão, e com seus membros, nestas palavras: “Se seus filhos abandonarem minha lei e em meus juízos não andarem, se minhas justiças profanarem, meus mandamentos não guardarem, visitarei suas iniqüidades com vara, seus pecados com açoites; minha misericórdia, porém, não afastarei dele” [Sl 89.30-33]. Finalmente, pela própria disposição dos artigos do Credo somos lembrados de que na Igreja de Cristo reside perpetuamente a graça do perdão dos delitos, porque, depois de haver constituído a Igreja, imediatamente se acrescenta a remissão dos pecados.

João Calvino

AOS CRENTES SOB A NOVA ALIANÇA, EM CRISTO, NÃO MENOS FACULTADO É O PERDÃO DOS PECADOS

Porventura, pela vinda de Cristo, na qual se revelou a plenitude da graça, foi este benefício detraído aos fiéis, de sorte que não ousem suplicar por perdão dos delitos, os quais, havendo ofendido ao Senhor, não alcancem nenhuma misericórdia? Que outra coisa isto seria senão dizer que Cristo veio para perdição, não para a salvação dos seus, se a indulgência de Deus em perdoar os pecados, que no Antigo Testamento estivera constantemente disponível aos santos, agora foi totalmente removida? Pois se temos fé nas Escrituras que eloqüentemente proclamam que por fim em Cristo se revelou plenamente a graça e a humanidade do Senhor [Tt 2.13], derramada a opulência de sua misericórdia [2Tm 1.9; Tt 3.4], consumada a reconciliação de Deus e dos homens [2Co 5.18], não nutramos dúvida de que muito mais benigna se exibe diante de nós a clemência do Pai celestial, a qual não foi cortada nem apoucada. Com efeito, tampouco disso faltam evidências. Pedro, que ouviu dos lábios de Cristo que quem negasse seu nome diante dos homens, ele também o negaria diante dos anjos celestiais [Mt 10.33; Mc 8.39; Lc 9.26], o negou três vezes em uma só noite, e com graves imprecações [Mt 27.69-74; Mc 14.66-72; Lc 22.54-62; Jo 18.15- 17, 25-27], contudo não é privado de perdão [Lc 22.32; Jo 21.15-17]. Aqueles que entre os tessalonicenses viviam desregradamente são castigados de modo que Paulo os convida ao arrependimento [2Ts 3.6, 11-15]. Por certo que nem tampouco Pedro desespera a Simão Mago, senão que, antes, o exorta a nutrir boa esperança, quando o persuade a recorrrer à oração.

João Calvino

TAMBÉM OS PROFESTAS ESTÃO SATURADOS DE PROMESSAS DE PERDÃO DIVINO AO POVO PECADOR

Não quero, porém, encetar uma enumeração que nunca houvesse de terminarse, pois os profetas estão saturados de promessas deste gênero, as quais, no entanto, oferecem misericórdia ao povo coberto de crimes infindos. Que iniqüidade há mais grave que a rebelião? Pois é chamada de divórcio entre Deus e a Igreja. Mas isto é superado pela bondade de Deus. “Quem é o homem”, diz o Senhor por intermédio de Jeremias, “de quem, se a esposa prostituir seu corpo com os adúlteros, com ela tolere fazer as pazes? Mas, de tuas fornicações todos os teus caminhos foram contaminados, ó Judá, encheste a terra de teus sórdidos amores. Mas ainda assim, torna para mim, e eu te receberei. Volta, ó Israel rebelde. Não farei cair minha ira sobre ti, porque sou misericordioso, e não conservarei para sempre minha ira” [Jr 3.1, 12]. E obviamente outro não pode ser o sentimento daquele que afirma não querer a morte do pecador; antes, que se converta e viva [Ez 18.23, 32; 33.11]. Por isso, quando Salomão dedicava o templo, também o destinava a este uso: para que daí fossem ouvidas as orações feitas no afã de obter o perdão dos pecados. “Se contra ti”, dizia ele, “teus filhos pecarem, pois não há homem que não peque, e irado os entregares a seus inimigos, e em seu coração se arrependerem, e arrependidos te suplicarem em seu cativeiro, dizendo: Pecamos, agimos iniquamente, e orarem na direção da terra que deste a seus pais e na direção deste templo santo, que ouças no céu suas preces, e sejas propício a teu povo que pecou contra ti, e a todas as suas iniqüidades com as quais prevaricaram contra ti” [1Rs 8.46-50]. Tampouco foi sem causa que o Senhor ordenou na lei sacrifícios diários pelos pecados, pois a não ser que o Senhor soubesse que seu povo laboraria em práticas constantes de pecados, nunca o teria provido destes remédios.

João Calvino

OS PATRIARCAS E O ISRAEL DE OUTRORA, A DESPEITO DE SEREM O POVO DE DEUS, PECANDO MESMO QUE SEJA GRAVEMENTE ALCANÇAM O PERDÃO DIVINO

E para começarmos quase do próprio berço da Igreja, os patriarcas foram circuncidados, admitidos à participação do pacto, plenamente instruídos, sem dúvida pela diligência do pai quanto à justiça e integridade, quando conspiraram para o fratricídio [Gn 37.18] – era um crime a ser abominado até pelos mais depravados salteadores. Finalmente abrandados pelas advertências de Judá, venderam o irmão [Gn 37.28] – também esta foi intolerável desumanidade. Simeão e Levi, em vingança nefária, e condenada também pelo juízo do pai, agiram com crueldade para com os siquemitas [Gn 34.25]. Ruben contaminou o leito paterno com a mais torpe devassidão [Gn 35.22]. Judá, cedendo a desejo fornicário, contrariando a lei da própria natureza, se une à nora [Gn 38.16-18]. Contudo, tão longe está de serem expulsos do povo eleito, os quais são, antes, levantados como cabeças. E o que diremos acerca de Davi? Quando seria o sumo administrador da justiça, com quão grande depravação abriu caminho a cega paixão, mediante a efusão de sangue inocente! [2Sm 11.4, 15]. Já havia sido regenerado e entre os regenerados era adornado de insignes encômios do Senhor – contudo perpetrou o que até entre os gentios é horrível depravação. E no entanto alcançou perdão [2Sm 12.13]. E, para que não nos detenhamos em exemplos individuais, quantas vezes promessas da divina misericórdia para com os israelitas subsistem na lei e profetas, tantas vezes se comprova que o Senhor se mostra aplacável para com as ofensas de seu povo. Pois que promete Moisés sucederá quando o povo caído em apostasia se volta para o Senhor? “Deus te reconduzirá do cativeiro, e se compadecerá de ti, e te congregará dentre os povos junto aos quais fores disperso. Se fores disperso até os confins do céu, daí eu te congregarei” [Dt 30.3, 4].

João Calvino

UMA VEZ QUE O CRENTE CONTINUA SENDO PECADOR, É PRECISO BUSCAR CONTINUAMENTE O PERDÃO DE PECADOS

Não obstante, uma vez que esses espíritos frenéticos, aos quais mencionei, tentam arrebatar à Igreja esta âncora singular da salvação, as consciências devem firmar-se ainda mais fortemente contra opinião tão pestilenta. Os novacianos, outrora, agitaram as igrejas com este dogma. Não muito diferentes dos novacianos, porém, também nosso século tem certos indivíduos dentre os anabatistas que fomentam os mesmos desviarios. Pois imaginam que no batismo o povo de Deus é regenerado a uma vida pura e angelical que não é viciada de nenhuma sordidez da carne. Mas se alguém vier a transviar após o batismo, nada mais lhe resta senão o inoxerável juízo de Deus. Em suma, não se dá ao pecador decaído, após recebida a graça, nenhuma esperança de perdão, porque não reconhecem outra remissão de pecados, a não ser aquela pela qual somos inicialmente regenerados. Mas, ainda que nenhum engano seja mais claramente refutado pela Escritura, visto que, no entanto, esses acham a quem o imponham, como também Novácio outrora teve muitos seguidores, mostremos sucintamente o quanto desvairam para perdição própria e de outros. De início, quando, por mandado do Senhor, os santos repetem diariamente esta prece: “Perdoa nossas dívidas” [Mt 6.12], sem dúvida estão confessando que são devedores. Nem pedem em vão, porque o Senhor, por toda parte, outra coisa não prescreu que se deva buscar senão aquilo que ele mesmo houvesse de dar. Ainda mais, embora testificasse que toda oração haverá de ser ouvida pelo Pai, no entanto esta absolvição selou-a com promessa, além do mais, especial. Que mais queremos? O Senhor requer dos santos confissão dos pecados, e certamente contínua, por toda a vida, e lhes promete perdão. Que ousadia é ou isentá-los de pecado, ou, caso hajam tropeçado, excluí-los totalmente da graça! Ora, a quem ele quer que perdoemos setenta vezes sete? Porventura não é aos irmãos [Mt 18.21, 22]? A que propósito preceituou isto, senão para que lhe imitemos a clemência? Portanto, perdoa não uma ou duas vezes, ao contrário, quantas vezes, consternados pelo reconhecimento de suas faltas, a ele suspiram.

João Calvino