E, contudo, como teve esse santo varão empenho singular de edificação, de tal
forma ele modera a maneira de ensinar a verdade, que sabiamente se guarda até
onde possível de causar escândalo. Ora, ele lembra que as coisas que com verdade
se dizem podem, ao mesmo tempo, ser ditas de maneira conveniente. Se alguém
assim se dirija ao vulgo: “Se não credes, isso acontece porque já fostes divinamente destinados à perdição”, esse não só fomenta a negligência, mas também encoraja a
prática do mal. Se alguém também estende para o tempo futuro a afirmação de que
os que ouvem não crêem, porquanto foram condenados, será imprecação mais do
que ensino. Agostinho quer que essa classe de pessoas, e com toda razão, não tem
nada a ver com a Igreja, visto que carecem do dom de ensinar e atemorizam as
pessoas simples ignorantes. Em outro lugar, ele contende, certamente com razão, que se deve manter “que
o homem então aproveita a correção quando Aquele que faz aproveitar, mesmo sem
correção, se compadece e ajuda aqueles a quem assim o quis. Mas, por que ajuda
assim a este, e de outro modo àquele? Longe de nós dizermos que o juízo é do barro,
não do oleiro!” Igualmente, em seguida: “Quando os homens, mediante a correção,
voltam ao caminho da justiça, quem no coração lhes opera a salvação, senão Aquele
que dá o crescimento, sem importar quem planta ou rega [1Co 3.6-8], a quem, quando
o quer salvar, nenhum livre-arbítrio humano resiste? Portanto, não se pode duvidar
que a vontade humana não possa resistir à vontade de Deus, “que fez tudo quanto
quis no céu e na terra” [Sl 135.6] e que fez também as coisas que haverão de
existir [Is 45.11], de tal maneira que ele não faça o que quer, quando da própria
vontade dos homens ele faz o que quer.” Ainda: “Quando quer conduzir a si os
homens, porventura os ata com liames corporais? Age interiormente, sustêm-lhes
interiormente o coração, move-lhes interiormente o coração, e com sua vontade que
neles operou, os atrai.” Mas, de modo nenhumse deve omitir o que adiciona logo
a seguir: “Porque não sabemos quem pertença ao número dos predestinados, ou não
pertença, assim nos convêm tratar a todos, querendo que venham a ser salvos. Assim
procuraremos fazer com que todos sejam participantes de nossa paz. Mas,
nossa paz repousará somente sobre os filhos da paz [Mt 10.13; Lc 10.6]. Portanto,
quanto a nós concerne, deverá ser aplicada a todos, à semelhança de um remédio,
correção salutar e severa, para que eles mesmos não pereçam, ou não levem outros
a perder-se. A Deus, porém, caberá fazê-la eficaz àqueles a quem conheceu de antemão
e predestinou.”
João Calvino