OS ELEITOS SÃO ASSISTIDOS PELA ESPERANÇA DA RESSURREIÇÃO E DA BEM AVENTURANÇA
ETERNA, CONTUDO, CERCADA DE NÃO POUCOS OBSTÁCULOS
Ainda que Cristo, “o Sol da Justiça” [Ml 4.2], depois de vencer a morte, a luzir
através do evangelho, como Paulo o testifica, a vida nos iluminou [2Tm 1.10], donde
também, crendo, se diz que “que passamos da morte para a vida” [Jo 5.24], “já não
somos peregrinos e forasteiros, mas, antes, concidadãos dos santos e membros da
famíliade Deus” [Ef 2.19], que “nos fez assentar” com o próprio Unigênito“nos lugares
celestais” [Ef 2.6], de sorte que nada falte à plena felicidade, contudo, para que
não nos seja molesto ser ainda exercitados sob a dura militância, como se nenhum
fruto se fizesse manifesto da vitória alcançada por Cristo, faz-se necessário sustentar
o que em outro lugar se ensina em relação à natureza da esperança. Pois uma vez que
esperamos coisas que não se vêem[Rm 8.25], e, como se diz em outro lugar, “a fé é a
demonstração de coisas invisíveis [Hb 11.1], enquanto estivermos encerrados no cárcere
da carne, somos “peregrinos longe do Senhor” [2Co 5.6]. Por essa razão, o próprio
Paulo diz em outro lugar que “já morremos e nossa vida está escondida com
Cristo em Deus, e quando ele próprio, que é nossa vida, se manifestar, então também
nos manifestaremos com ele em glória” [Cl 3.3, 4]. Esta, pois, é nossa condição: “que
vivamos sóbria, justa e piedosamente neste mundo, aguardando a bendita esperança e
a vinda da glória do grande Deus e nosso Salvador, Jesus Cristo” [Tt 2.12, 13].
É indispensável que tenhamos aqui uma paciência singular, para que não suceda
que, extenuados, ou revertamos o curso, ou desertemos nosso posto. Portanto, tudo
quanto até aqui foi exposto acerca de nossa salvação requer mentes alçadas para o
céu, para que “a Cristo, não o havendo visto, amais; no qual, não o vendo agora, mas
crendo, vos alegrais com gozo inefável e glorioso; alcançando o fim de vossa fé, a
salvação de vossas almas”, como Pedro sentencia [1Pe 1.8, 9]. Razão por que Paulo
diz que “a fé e o amor dos piedosos atentam para a esperança que está posta nos
céus” [Cl 1.4, 5]. Assim sendo, quando do céu ficamos a esperar com os olhos fixos
em Cristo, sem que algo os detenha na terra, de modo que não conduzam à bem aventurança
prometida, de fato cumpre-se esta declaração: nosso coração está onde
está nosso tesouro” [Mt 6.21].
Daqui a fé ser tão rara no mundo: que à nossa obtusidade nada é mais difícil que transcender a obstáculos incontáveis enquanto avançamos para o alvo da suprema
vocação [Fp 3.14]. À ingente caudal de misérias de que somos quase que levados de
roldão, acrescem os motejos dos homens profanos, com que nossa simplicidade é
atacada, enquanto, renunciando deliberadamente às seduções dos bens presentes, parecemos
buscar uma bem-aventurança que nos jaz oculta, como se fosse uma sombra
fugidia. Finalmente, de baixo para cima e de cima para baixo, de frente e por detrás,
violentas tentações nos assediam, as quais nossos ânimos longe estariam de poder
suportar, salvo se, desvencilhados das coisas terrenas, fossem ligados à vida celeste, a
qual, na aparência, está mui distante. Portanto, deveras tirou proveito no evangelho
aquele que, afinal, acostumou-se à meditação contínua da bendita ressurreição.
João Calvino